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Cultura mostra polarização radical, inédita desde Vietnã
SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA
O estado de espírito em que o
mundo cultural americano se encontra desde que George W. Bush
implantou sua agenda conservadora como resposta aos ataques
terroristas de 11 de Setembro pode ser resumido e exemplificado
pela lista de livros mais vendidos
de não-ficção do "New York Times", de domingo passado.
O primeiro lugar é de "America
(The Book)", textos cômicos do
apresentador de TV de esquerda
Jon Stewart, em que a direita é esculhambada. Em segundo está
"How to Talk to a Liberal (If You
Must)" (como falar com um esquerdista, se for preciso), coletânea de colunas da comentarista
ultraconservadora Ann Coulter
que acaba com os democratas,
Hollywood em particular.
Esse pensamento de "torcida de
futebol" não ocorre faz tempo nos
EUA, afirma um estudioso do
comportamento do eleitor. "Desde a Guerra do Vietnã, nos anos
60, nunca o país esteve tão dividido como hoje", disse à Folha Vincent Hutchings, professor de
ciência política da Universidade
de Michigan. "É como se os republicanos estivessem se vingando
pelos anos Clinton e os democratas, furiosos pelo fato de a eleição
de Bush em 2000 ter sido um pleito "ilegítimo", entre aspas."
A novidade é que, desde 11 de
Setembro, a primazia sobre as
manifestações culturais saiu da
mão dos liberais, como é chamada a esquerda (mais para centro-esquerda) americana, historicamente alinhada com Hollywood,
a indústria fonográfica e a produção literária, e hoje é disputada
palmo a palmo com os conservadores (a centro-direita e a direita).
A novidade é que cada ação de um
lado corresponde a uma reação
quase imediata do opositor.
Michael Moore lançou em junho "Fahrenheit 11 de Setembro",
o principal documento cinematográfico da Era Bush, em que,
usando apenas o artifício da edição, o militante democrata critica
duramente a administração Bush
e faz ligações entre a reação ao
ataque terrorista e os interesses
econômicos da família presidencial. Menos de quatro meses depois, o republicano Kevin Knoblock contra-atacava com "Celsius 41.11", que tem Moore como
alvo principal. O alcance de ambos (o primeiro com mais de US$
100 milhões de bilheteria, o segundo com menos de um centésimo disso) é incomparável, mas a
prática é reveladora.
Além disso, a ascensão conservadora na cultura trouxe de volta
à cena seu filho bastardo, a intimidação. Esta mostraria a cara logo
após o 11 de Setembro, na forma
de boicote da mídia e de formadores de opinião a Noam Chomsky,
Susan Sontag e Gore Vidal -as
únicas três vozes que ousavam
destoar do coro do ultrapatriotismo que se seguiu ao choque.
Mas foi mais grave meses depois, na véspera da invasão do
Iraque, quando Sean Penn denunciou o que chamou de "macarthismo redivivo". No final de
2002, o ator pagou um anúncio no
"Washington Post" pedindo que
o presidente Bush interrompesse
o ciclo de violência iniciado no 11
de Setembro. Desde então, disse,
viu diversos projetos serem cancelados ou recusados por produtores preocupados com os humores da Casa Branca.
Seus colegas Tim Robbins e Susan Sarandon, ativistas de esquerda, relataram casos semelhantes.
Penn revivia, assim, um trauma
que não era estranho à sua família
-o pai, o diretor Leo Penn, entrou para a lista negra da campanha anticomunismo desencadeada pelo senador Joseph MacCarthy (1909-57) nos anos 50.
Outra família hollywoodiana
exemplifica tão bem a divisão da
cultura que poderia estar num
reality-show. O programa teria de
se chamar "Os Baldwins". De um
lado, Alec, 46, ator de "A Caçada
ao Outubro Vermelho", democrata atuante; de outro, o caçula
Stephen ("Os Suspeitos"), 38, republicano e evangélico recém-convertido. "Ele é um inocente
útil e foi usado", disse Alec, sobre
a participação do irmão na convenção que referendou a candidatura de Bush, em setembro.
"Minha participação na convenção tem a ver com meu desejo
de apoiar o candidato que tem
mais fé", rebateu Stephen. "Sistematicamente, Deus tem sido apagado e removido da nossa cultura,
nossa sociedade, nosso governo, e
eu acho isso assustador."
Outro ativista religioso, o diretor Mel Gibson, fez de seu libelo
cristão e (segundo críticos) anti-semita o sucesso cinematográfico
do ano. Falado em aramaico, "A
Paixão de Cristo" deu um nó na
cabeça dos estrategistas da indústria cinematográfica ao faturar
US$ 650 milhões desde sua estréia, no começo do ano
Talvez a ironia esteja mesmo
num programa de TV. Chama-se
"American Dreams", vai ao ar aos
domingos à noite numa emissora
aberta. É a história de uma família
fictícia que luta para ficar unida e
tem como pano de fundo os EUA
de verdade, metidos numa guerra
num país distante, cujas tropas
são acusadas de maus-tratos e foram colocadas ali por um presidente texano, que promete perseguir e matar os "malfeitores".
O detalhe é que a série se passa
em 1965, a guerra é a do Vietnã e o
presidente vindo do Texas chama-se Lyndon Johnson (1908-1973). "Fica cada vez mais difícil
não fazer conexões entre as duas
épocas e suas divisões", disse Jonathan Prince, produtor da série.
Com ele concorda o professor
Vincent Hutchings, que conclui:
"Seja quem for o vencedor no dia
2, Kerry ou Bush, a probabilidade
é que esta divisão continue."
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