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A ESQUERDA E A DIREITA
Falam Michael Hardt, autor de "Império", e Marvin Olasky, do "conservadorismo com compaixão"
"Pobres foram abandonados"
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
GEORGE W. BUSH ACELEROU o desmantelamento
do Estado do Bem-Estar Social dos EUA, abandonando
suas promessas de campanha de cuidar das crianças pobres e de priorizar a educação. Os custosos esforços militares de seu governo, que protagonizou dois conflitos
(Afeganistão e Iraque), além da guerra ao terrorismo, só
fizeram agravar a situação, pois consumiram fundos que
deveriam ter sido destinados a programas sociais.
A análise é de Michael Hardt,
um dos principais pensadores da
esquerda dos EUA, que estuda os
aspectos políticos, legais e socioeconômicos da globalização. Ao lado do filósofo italiano Antonio
Negri, é autor de "Multitude"
(multidão) e de "Império".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Como o sr. analisa as políticas sociais aplicadas por Bush?
Michael Hardt - Primeiro, Bush
deu continuidade ao desmantelamento do Estado do Bem-Estar
Social. Este vem ocorrendo nos
EUA desde a era [Ronald] Reagan
[1981-89] e foi impulsionado por
[Bill] Clinton [1993-2001]. Infelizmente, a retórica utilizada por
Bush em 2000, segundo a qual as
crianças pobres receberiam atenção especial do governo, não se
traduziu em políticas públicas.
Segundo, os gastos militares elevadíssimos do governo tornaram
impossível a aplicação de políticas
sociais eficazes, que são custosas.
Assim, a falta de dinheiro para financiar políticas sociais foi
exacerbada no
governo Bush
por conta dos
vultosos custos
da segurança e
das guerras.
Folha - Qual é
o impacto social disso?
Hardt - Obviamente, a
distância entre
os ricos e os
pobres aumentou em razão
da ausência de
políticas sociais verdadeiras. Em diversas áreas, da
educação à saúde, passando pelo
seguro-desemprego, houve uma
grave deterioração dos programas governamentais. O governo
Bush não está por trás do início
do processo, mas ele o exacerbou.
Folha - O "conservadorismo com
compaixão" de 2000 desapareceu?
Hardt - Sim. Para aplicá-lo, Bush
teria de privilegiar políticas sociais condizentes com sua visão
da época. Isso não ocorreu. Suas
principais promessas de campanha, segundo as quais nenhuma
criança seria deixada para trás e a
educação seria prioridade, não foram cumpridas. Curiosamente,
os republicanos não falam mais
em "conservadorismo com compaixão". Essa imagem de Bush foi
abandonada quando ele se transformou no presidente da guerra.
Folha - Não é, portanto, tão injusto dizer que ele favoreceu os ricos?
Hardt - É verdade. De várias maneiras, podemos observar que ele
tinha em mente os ricos quando
tomou medidas socioeconômicas. Por exemplo, os cortes de impostos beneficiaram quem paga
mais. Por outro lado, deve-se ressaltar que a guerra, sobretudo seu
custo, não é realmente interessante para os mais abastados, embora
possa beneficiar alguns grupos.
Folha - Se eleito, John Kerry será
diferente de Bush nessas áreas?
Hardt - No que tange aos elementos básicos do Estado do
Bem-Estar Social, não há uma
grande diferença entre ambos. Na
verdade, essa é uma das características da estratégia democrata.
Esta consiste em não apresentar
um programa social significativamente diferente do republicano.
Os democratas buscam propor o
mesmo que os republicanos, mas
um pouquinho mais à esquerda.
Nada em sua campanha ou em
seu passado político sugere que
Kerry venha a aplicar políticas sociais mais ousadas ou que venha a
mudar essa estratégia democrata.
Nada indica que ele vá dar mais
valor à assistência aos pobres. As
diferenças entre ambos são sutis.
As principais são a intenção democrata de mudar a política fiscal
e a de não privatizar parcialmente
a Previdência, como quer Bush.
Folha - As perspectivas são, então, sombrias para os pobres?
Hardt - Sim. Contudo uma derrota democrata poderia abrir caminho para uma reavaliação da
estratégia eleitoral do partido.
Com isso, em vez de apresentar
um programa conservador, o
Partido Democrata talvez venha a
expor uma verdadeira alternativa
à estratégia republicana, um
programa que
leve em conta
os problemas
sociais, a pobreza, a distância entre os ricos e os pobres.
Folha - Bush
deu muito poder a instituições religiosas
no que tange à
aplicação de
suas políticas
sociais. Como o
sr. vê essa opção de sua administração?
Hardt - Não é
uma boa idéia.
Afinal, a Constituição estabelece
uma clara separação entre Estado
e religião. Com Bush na Presidência, essa regra tem sido freqüentemente esquecida. Essa tendência
acabaria, ademais, destruindo a
necessidade de um governo secular ativo nas áreas sociais.
Também é importante manter a
separação entre a igreja e o Estado
porque, caso contrário, as portas
estariam abertas para um sistema
em que haveria a exclusão de alguns grupos sociais. Por exemplo,
as pessoas que não têm a mesma
religião que a instituição que aplica a política social poderiam ser
excluídas bem como aquelas que
não têm nenhuma religião. O Estado laico é a maior garantia da liberdade de escolha e de religião.
Folha - A religião desempenha
um papel importante no governo
Bush. Qual é o real papel da religião na cena política americana?
Hardt - Bem, não tenho certeza.
É verdade que Bush dá muito valor à religião e enfatiza a relação
entre suas crenças e sua administração. Outros políticos americanos também agem dessa forma.
Todavia não tenho certeza de
que a religião não seja utilizada
por eles para obter ganhos eleitorais. Não sei até que ponto a fé de
muitos políticos dos EUA não advém da necessidade de conquistar
um eleitorado que valoriza bastante esse aspecto. Não sei se a religião é tão importante assim.
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