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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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ARTIGO

"Nós, o povo", somos o verdadeiro inimigo


Hoje o despotismo já reina inconteste nos EUA. A velha República é uma sombra dela mesma, e vivemos à luz de um império nuclear

Não somos guiados pela lei, mas pela fé no presidente, cuja forte crença cristã prega que "a fé é a substância das coisas pelas quais se anseia"

GORE VIDAL

Pertenço a uma minoria que hoje é a menor do país e se reduz a cada dia que passa. Sou veterano da Segunda Guerra Mundial. Lembro-me de pensar, quando saí do Exército, em 1946: ""Agora acabou. Vencemos. E quem vier depois de nós nunca precisará fazer a mesma coisa de novo". Então aconteceram as duas guerras loucas da vaidade imperial -Coréia e Vietnã. Elas foram amargas para nós -e, com certeza, ainda mais para o chamado inimigo. Em seguida, nos envolvemos numa guerra perpétua contra o que parecia ser o clube do inimigo do mês. Essa guerra fazia com que recursos importantes fossem canalizados continuamente para o setor militar e a polícia secreta, ao mesmo tempo em que impedia o dinheiro de chegar até nós, os contribuintes, com nossas preocupações rasteiras com a vida, a liberdade e a busca da felicidade.
No entanto, por mais corrupto que nosso sistema tenha se tornado ao longo do último século -e eu vivi três quartos dele-, ainda nos apegávamos à Constituição e, sobretudo, à Carta dos Direitos [Bill of Rights: a declaração formal dos direitos dos cidadãos americanos, incorporada à Constituição por meio das emendas 1 a 10]. Por piores que as coisas ficassem, eu nunca imaginei que chegaria a ver grande parte da nação -de nós, o povo- passar sem ser consultada ou representada numa questão envolvendo guerra e paz, nem se manifestar em números tão grandes contra um governo arbitrário e sigiloso que prepara e conduz guerras para nós, ou, pelo menos, para que um Exército recrutado entre os desempregados possa combater nelas. Sim -dando prova de bom senso, eles agora deixam boa parte dos combates a cargo dos pouco instruídos, dos excluídos.
Durante o Vietnã, Bush fugiu para a Guarda Aérea Nacional do Texas. Indagado por que evitou prestar serviço militar no Vietnã, Cheney respondeu: ""Eu tinha outras prioridades". Bem, 12 milhões de nós também tínhamos outras prioridades, 60 anos atrás. Prioridades que 290 mil entre nós nunca conseguiram concretizar.
De quem é a culpa? Nossa? Deles? Bom, podemos, sem medo de errar, atribuir a culpa a certos jogadores nos setores do petróleo e do gás que, na prática, sequestraram o governo, desde a Presidência até o Congresso e, o que é mais preocupante ainda, até o Judiciário. Como o fizeram? Curiosamente, os meios para isso sempre existiram. Foram necessários a cobiça maior e outros interesses para fazer esse golpe de Estado funcionar.
Foi Benjamin Franklin, imaginem só, quem enxergou nosso futuro com mais clareza ainda em 1787, quando, na condição de delegado à Convenção Constitucional, na Filadélfia, ele leu pela primeira vez a Constituição que estava sendo proposta. Ele estava velho, estava morrendo; não estava em condições de saúde de falar, mas preparou um texto para que um amigo o lesse. É uma declaração tão sombria que a maioria dos livros didáticos de história omite suas palavras-chave.
Franklin exortou a Convenção Constitucional a aceitar a Constituição proposta, apesar do que ele viu como sendo suas falhas grandes, porque, para ele, ela poderia garantir um governo bom no curto prazo. ""Não existe forma de governo que não possa constituir uma benção para o povo se for bem administrada, e, ademais, acredito que esta [a forma proposta] deverá ser bem administrada durante muitos anos e poderá terminar no despotismo, como já fizeram outras formas antes dela, apenas quando o povo se torne a tal ponto corrompido que precise de um governo despótico, tendo se tornado incapaz de suportar qualquer outro." Pense Enron, Merril Lynch, etc. Pense nos votos mal contados, no filho de Scalia argumentando diante de seu pai, não rejeitado como juiz na Suprema Corte, enquanto Thomas, tampouco rejeitado, está sentado a seu lado em silêncio, sua mulher já trabalhando para a administração Bush que se aproxima. Pense, finalmente, no colégio eleitoral, uma máquina dúbia e antidemocrática que Franklin sem dúvida via como fonte de profunda corrupção e, consequentemente, problemas para a República, como acabou sendo não apenas em 1876, mas também em 2000.
A profecia de Benjamin Franklin se realizou em dezembro de 2000, quando a Suprema Corte abriu caminho pela Constituição à força para escolher como presidente o perdedor na eleição daquele ano. Hoje o despotismo já reina inconteste. A velha República é uma sombra dela mesma, e vivemos sob a luz forte de um império nuclear mundial com um governo que vê como seu verdadeiro inimigo a ""nós, o povo", destituídos de nosso direito eleitoral garantido. A guerra é a meta usual dos déspotas, e guerra em série é o que teremos, a não ser que, com a ajuda de simpatizantes na nova velha Europa e de nós mesmos, finalmente despertos, consigamos convencer esta administração peculiar de que ela está agindo inteiramente por conta própria, na contramão de toda a nossa história.
Uma noite dessas, na CNN, fiz o admirável Aaron Brown parar em silêncio -não, dessa vez, com Benjamin Franklin, mas com John Quincy Adams, que, em 1821, com respeito aos EUA combaterem para libertar a Grécia da Turquia, disse que os Estados Unidos ""não saem para o exterior em busca de monstros para destruir". Se os Estados Unidos se envolvessem em todos os problemas estrangeiros, poderiam ""tornar-se ditadores do mundo; deixariam de ser senhores de seu próprio espírito", de sua própria alma.
No caso de sermos autorizados a ter uma eleição presidencial aqui em nossa pátria em 2004, desconfio que vamos nos dar conta de que a única mudança de regime que precisa ser alvo da atenção de nosso espírito -ou alma- reconquistado acontecerá em Washington.
O presidente Adams morreu há muito tempo. E nós estamos no ramo do império desde 1898. Tínhamos prometido dar aos filipinos sua independência da Espanha. Então mudamos de idéia, e, no processo de americanizá-los, acabamos por matar cerca de 200 mil filipinos.
Alguns anos atrás, aconteceu uma troca de idéias significativa entre o então general Colin Powell e a então secretária de Estado, Madeleine Albright. Como tantos outros civis, ela estava ansiosa por utilizar nossas tropas contra nossos inimigos. De que adianta dispor de tanta força militar e não usá-la? Powell disse a Albright: ""Eles não são soldadinhos de chumbo". Mas, em nome do combate ao comunismo, gastamos trilhões de dólares com armamentos, durante muitos anos, a tal ponto que hoje corremos o perigo de afundar sob o peso de tantas armas.
Assim, acho que era inevitável que, cedo ou tarde, uma nova geração tivesse a idéia brilhante -por que não paramos de perder tempo com diplomacia, tratados e coalizões e simplesmente usamos nosso poderio militar para dar ordens ao resto do mundo? Um ou dois anos atrás, uma dupla de neoconservadores propôs exatamente essa idéia. Eu respondi -em artigo impresso- que, se o fizéssemos, teríamos guerra perpétua em busca da paz perpétua. E isso não é bom para os negócios. Então a junta Cheney-Bush assumiu o poder. Embora seu interesse primordial seja o petróleo, os dois também gostaram da idéia de brincar com soldados.
Em setembro passado, o Congresso recebeu da administração um documento intitulado ""Estratégia de Segurança Nacional para os Estados Unidos". Como observou o historiador Joseph Stromberg, ""é preciso ler para acreditar no que ele diz". A doutrina prega que é desejável que os Estados Unidos se tornem -nas palavras de Adams- ditadores do mundo. Além disso, parte da premissa de que o presidente e seus comandados mais imediatos possuem o direito moral de governar o planeta. O documento declara que ""nossa melhor defesa é um bom ataque". Em seguida, é anunciada a doutrina dos ataques preventivos: ""Como questão de bom senso e de autodefesa, os EUA tomarão medidas contra tais ameaças emergentes antes que elas tomem forma plenamente". Sim -o general Ashcroft deve estar em Utah neste momento, com certeza, prendendo todos os mórmons do sexo masculino antes que cada um deles possa sequestrar oito meninas e moças para serem suas possíveis mulheres.
O artigo 1º, seção 8 da Constituição diz que apenas o Congresso pode declarar guerra. Mas o Congresso entregou esse grande poder ao presidente em 1950 e nunca o tomou de volta.
Como disse o ex-senador Alan Simpson tão alegremente na televisão, uma noite dessas: ""O comandante-em-chefe das Forças Armadas vai decidir qual é a causa. Não será o povo americano quem tomará a decisão". Assim, em assuntos de grande importância, não somos guiados pela lei, mas pela fé no presidente, cuja forte crença cristã prega que ""a fé é a substância das coisas pelas quais se anseia, a evidência das coisas não vistas".
Em resposta às coisas não vistas, a Lei USA Patriot foi aprovada pelo Congresso às pressas e promulgada 45 dias depois do 11 de setembro. Querem que acreditemos que suas 342 páginas cuidadosamente redigidas foram escritas nesse prazo tão curto. Na realidade, ela soa como uma continuação da lei antiterrorismo promulgada por Clinton após Oklahoma City. A Lei USA Patriot autoriza agentes do governo a arrombar a casa de qualquer pessoa, mesmo na ausência dos donos da casa, revistá-la e impedir o cidadão, por tempo indeterminado, de descobrir que foi emitido um mandado de busca. Os agentes podem obrigar bibliotecários a lhes dizer quais livros foram emprestados por qualquer pessoa. Se o bibliotecário se recusar a fazê-lo, pode ser indiciado criminalmente. Eles também têm o direito de acessar os extratos de cartão de crédito e outras informações particulares sobre qualquer pessoa, sem aprovação judicial prévia e sem o consentimento do cidadão.
E toda essa atividade que fere a Constituição não precisa nem sequer ter ligação com o terrorismo. No início de fevereiro, o Departamento da Justiça vazou a Lei Patriot 2, conhecida como Lei do Fortalecimento da Segurança Interna, datada de 9 de janeiro de 2003. Um Congresso que não promoveu um debate adequado da primeira lei com certeza se deixará ser pressionado e manipulado por essa ampliação que fere o espírito da lei.
Alguns itens previstos na nova lei: se um cidadão americano tiver sido acusado de apoiar uma organização classificada de terrorista, ele poderá ser privado de sua cidadania, mesmo que não fizesse idéia de que a organização tivesse qualquer vínculo com terroristas. A segunda lei também prevê mais revistas e grampos telefônicos sem mandado específico, além de prisões feitas secretamente.
No caso de um cidadão tentar lutar para conservar a cidadania com a qual nasceu, os agentes federais que conduziram a vigilância ilegal com a bênção de altos funcionários da administração serão imunes a qualquer ação na Justiça.
Presume-se que um cidadão americano nascido neste país e privado de sua cidadania possa ser deportado, exatamente como acontece hoje com pessoas nascidas fora do país. E, de acordo com uma decisão tomada recentemente por um tribunal federal, esse novo poder atribuído ao secretário da Justiça não é passível de revisão judicial.
Como, evidentemente, o americano que tiver sua cidadania revogada não poderá obter um passaporte, os muito previdentes criadores da Lei de Fortalecimento da Segurança Interna autorizam o secretário da Justiça a deportá-lo ""para qualquer país ou região, independentemente de esse país ou região possuir ou não um governo". Os casos difíceis -pessoas que não tenham nenhum lugar para ir- podem ser mantidos presos por tempo indefinido.
Enquanto sob a Lei USA Patriot apenas estrangeiros podiam ter negado seu acesso aos procedimentos legais de direito e ser sujeitos à deportação arbitrária, a Lei Patriot 2 inclui os cidadãos americanos na mesma categoria, com isso eliminando toda a Carta de Direitos com uma única canetada.
Em 1939, nosso maior historiador, Charles Beard, escreveu:
""O destino da Europa e da Ásia não foi confiado por Deus aos Estados Unidos, e apenas a arrogância, os sonhos de grandeza, os vãos desvios de imaginação, a sede de poder ou o desejo de escapar de nossas obrigações e nossos perigos internos poderiam nos levar a supor que a Providência nos tivesse indicado como o povo escolhido por Ele para pacificar o mundo".
Os americanos que se negam a mergulhar às cegas no turbilhão da política européia e asiática não são derrotistas nem neuróticos. Eles estão dando provas de sanidade mental, não de covardia -de pensamento adulto, em oposição ao pensamento infantil. Eles querem preservar e defender a República. O destino da América não é ser Roma ou o Reino Unido, mas a própria América.
Tradução de Clara Allain

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