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ELEIÇÃO NOS EUA
Para o analista James Lindsay, o democrata só conseguirá alterar a forma, pois o Congresso manterá o conteúdo
Mudar agenda externa é desafio para Kerry
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A vitória do democrata John
Kerry sobre George W. Bush na
eleição presidencial de novembro
acarretará uma clara mudança no
modo como a política externa
americana é aplicada, já que ele é
bem mais multilateralista que seu
oponente, porém não provocará
uma alteração essencial, pois a
maioria no Congresso deverá permanecer com os republicanos.
A análise é de James Lindsay,
ex-diretor para questões globais e
assuntos multilaterais do Conselho de Segurança Nacional dos
EUA (1996-97, sob o comando do
democrata Bill Clinton) e vice-presidente do Council on Foreign
Relations, um dos mais reputados
centros de pesquisas dos EUA.
Para ele, Kerry deverá privilegiar as relações transatlânticas e a
questão iraquiana, visto que os
problemas no Iraque perdurarão,
o que é um mau presságio para a
América Latina. "Creio que a
América Latina venha a tornar-se
mais importante [em Washington] se Kerry for eleito, mas não
tão importante quanto deveria
ser", apontou Lindsay.
Ele afirmou ainda que a política
externa já desempenhou a parte
mais importante de seu papel na
eleição presidencial deste ano.
"Tudo o que ocorreu no Iraque levou o governo Bush a seu mais
baixo índice de aprovação popular e propiciou uma real oportunidade aos democratas."
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Várias pesquisas mostram
que o eleitorado americano está
mais interessado em política externa agora do que em outras eleições
presidenciais. Em termos concretos, que importância ela terá na
eleição deste ano?
James Lindsay - Creio que a política externa já tenha desempenhado a parte mais importante de
seu papel na eleição presidencial
deste ano. Tudo o que ocorreu no
Iraque levou o governo Bush a seu
mais baixo índice de aprovação
popular e propiciou uma real
oportunidade aos democratas.
Há seis meses, a maioria dos republicanos considerava indubitável a reeleição de Bush. Contudo o
que ocorreu e ainda vem ocorrendo no Iraque enfraqueceu seriamente a posição do presidente.
Folha - Nesse sentido, porém, o
fato de Kerry ter escolhido o senador John Edwards, que tem pouca
experiência em política internacional, para ser o vice de sua chapa
não pode minar suas chances?
Lindsay - Isso ainda não é certo,
mas tudo indica que não por duas
razões. Primeiro, não interessa
aos americanos saber se Edwards
sabe muito sobre política internacional. O que conta é saber se ele
conhece o tema suficientemente
bem para desempenhar seu papel
de vice. Provavelmente, ele venha
a conseguir atingir esse patamar.
Segundo, nos EUA, o que realmente interessa ao eleitorado numa eleição é quem comanda a
chapa, não o vice. No caso atual, o
candidato a presidente será decisivo, não seu companheiro de
chapa. A regra geral no que tange
à escolha do vice lembra uma premissa médica. Ou seja, o mais importante é não causar males.
Escolhendo Edwards, Kerry não
fez mal à sua chapa. E, se o candidato a vice puder render-lhe alguns votos suplementares, sobretudo nos Estados ainda indefinidos, a chapa poderá mostrar-se
forte ao final da campanha.
Folha - Em seu último livro, escrito em parceria com seu colega Ivo
Daalder, do Instituto Brookings, há
o argumento de que o 11 de Setembro permitiu que Bush lançasse
uma revolução no que tange ao estilo da política externa dos EUA. O
sr. crê que a revolução esteja fadada a ter fim em razão de suas repercussões práticas e internacionais?
Lindsay - No final das contas, a
revolução de Bush tem como premissa uma constatação errônea,
segundo a qual a América pode
fazer o que bem entende na cena
internacional sozinha, sem o auxílio de seus aliados. Há vários
problemas intelectuais relacionados a essa premissa, mas o mais
grave é de ordem prática. Afinal,
embora sejam muito poderosos,
os EUA não são onipotentes.
O que observamos no Iraque
mostrou que o envolvimento maciço em conflitos mina a infra-estrutura militar de qualquer país,
mesmo a dos EUA. Ademais, isso
distorce o debate sobre política
externa. E devemos ter em mente
que o súbito interesse dos americanos por política internacional
não é genuíno e pode enganar até
os analistas experientes.
Na verdade, os americanos estão preocupados com a Guerra do
Iraque, com a reconstrução do
país e com o combate ao terrorismo internacional. Todavia questões ligadas ao desenvolvimento
econômico da América Latina, às
mudanças no equilíbrio de poder
na Ásia ou ao alastramento da
Aids pela África não são discutidas atualmente e provavelmente
não venham a entrar na pauta.
Há muitas discussões sobre a
Guerra do Iraque, e os políticos
insistem em tomar posição sobre
esse tema, mas isso é tudo. O eleitorado até se preocupa com isso,
mas trata-se de uma preocupação
com algo que ocorreu no passado.
Não há debate sobre o futuro no
que concerne à política externa.
Folha - Mesmo com a eventual
reeleição de Bush, os problemas
ocorridos no Iraque deverão pôr
fim à influência
dos neoconservadores, como Paul
Wolfowitz, vice-secretário da Defesa
dos EUA?
Lindsay - O poder dos neoconservadores ou imperialistas democráticos, como
Daalder e eu os
classificamos em
nosso livro, tem
sido exagerado
pelos analistas. A
força mais influente na atual
administração
provém dos conservadores radicais, que crêem na
necessidade de
destruir os "bandidos malvados".
Certamente, se
Bush for reeleito, eles manterão
sua influência por duas razões.
Primeiro, Bush continuará sendo
presidente. Segundo, [Dick] Cheney manterá seu posto de vice-presidente. Vários postos do gabinete poderão ser alvo de mudanças, até [Donald] Rumsfeld [secretário da Defesa] pode perder
seu cargo, porém Bush e Cheney
continuarão onde estão hoje.
O modo como ambos pensam
não tende a mudar. No caso de
uma eventual vitória republicana,
Bush poderá reagir de duas maneiras. Primeiro, ele poderá imaginar que quase perdeu a disputa
por conta da aplicação de políticas no mínimo controversas e
concluir que precisa mudar. Segundo, ele poderá inferir que sua
vitória demonstra que o eleitorado americano aprova suas políticas. Esta opção me parece bem
mais provável no caso de Bush.
Atualmente, por outro lado, há
bem menos alvos possíveis para
aplicar o tipo de unilateralismo
que o presidente
tende a privilegiar
porque, em seu
primeiro mandato, a América ficou tão sobrecarregada militarmente que não
pode hoje ampliar
seu escopo de
atuação militar.
Eis o problema
com o fato de os
militares dos EUA
estarem hoje no
Iraque e no Afeganistão. Afinal,
acabamos tendo
de arcar com 90%
dos custos financeiro e humano.
Se Bush for reeleito, o maior obstáculo à sua intenção de demonstrar ostensivamente o poder militar americano
será de ordem prática, não ideológica. E ele jamais reconhecerá publicamente que cometeu graves
erros em seu primeiro mandato.
Folha - Ou seja, em termos teóricos, há uma espécie de "overstretching" (extensão excessiva), como
classificou Paul Kennedy em seu livro "Ascensão e Queda das Grandes Potências"?
Lindsay - Exato. A capacidade
militar americana tem um limite,
e o governo Bush fez que esse limite ficasse bem próximo de ser
atingido. É verdade que, em parte,
as limitações são não só físicas,
mas também políticas. O apoio
popular é importante e não pode
ser negligenciado nessa análise.
Devemos lembrar que os eleitores estão preocupados com a
morte de soldados no Iraque e
passam a pensar que o governo
talvez não tenha uma estratégia
suficientemente bem elaborada
para superar os obstáculos.
Ademais, o conceito de guerra
preventiva está morto. Os EUA
não lançarão outra guerra preventiva a curto ou médio prazos
por três razões. Primeiro, por
conta do fracasso da aventura iraquiana. Os militares estão tão sobrecarregados que não seria prudente dar início a outro conflito.
Segundo, toda a história de realizar uma guerra preventiva contra o regime de Saddam Hussein
tinha como premissa a idéia de
que sabíamos que o ex-ditador
iraquiano dispunha de tipos de
arma que poderiam representar
uma ameaça para os EUA. Quando as tropas chegaram ao Iraque,
contudo, descobrimos que as armas de destruição em massa não
existiam mais. Seria, portanto,
muito mais difícil "vender" ao público americano a necessidade de
fazer outra guerra preventiva.
Terceiro, não há mais muitos alvos passíveis de invasão militar.
Quando falou da existência de um
"eixo do mal", Bush citou três países: o Iraque, o Irã e a Coréia do
Norte. Por que os EUA invadiram
o Iraque? Porque a invasão do
país era muito mais fácil que a do
Irã ou a da Coréia do Norte.
O Irã tem uma população que é
três vezes maior que a do Iraque, e
seu governo goza de mais legitimidade interna que o de Saddam
e tem mais amigos no exterior. A
Coréia do Norte possui entre seis
e oito armas nucleares e poderia
destruir Seul [capital da Coréia do
Sul] ou Tóquio [capital do Japão]
rapidamente. Assim, não seria
prudente atualmente lançar outra
guerra preventiva. Poderá haver
ataques preventivos a um campo
de treinamento de terroristas no
Iêmen, por exemplo, mas não
existirá outra guerra do gênero.
Folha - Como isso afeta a comunidade internacional?
Lindsay - É claro que isso é positivo internacionalmente. A situação no Iraque é ruim para todos,
visto que ninguém quer que o país
permaneça mergulhado num
caos político-institucional, que ele
volte a ter um regime autoritário
ou que ele se torne a casa de terroristas internacionais.
Além disso, devemos ter em
mente que o grande perigo é a
proliferação das armas de destruição em massa. Infelizmente, a administração americana atual não
deu a devida atenção ao assunto.
Parte do problema é que, com a
proliferação desenfreada, países
que pensavam que não precisavam dotar-se desses armamentos
poderão mudar de idéia por imaginar que a proliferação ameace
sua segurança nacional. Conter a
proliferação é um dos grandes desafios internacionais do século 21.
Folha - Em termos práticos, Kerry
poderá realmente mudar o perfil
da política externa americana?
Lindsay - Haverá uma clara mudança de estilo, pois ele é mais
conciliador e multilateralista que
Bush. Em termos práticos, contudo, não creio que ele venha a poder alterar essencialmente a política externa dos EUA. Sua vitória
na eleição presidencial não significará que os democratas recuperarão a maioria na Câmara ou no
Senado, o que quer dizer que ele
não terá muita margem de ação.
Um Congresso republicano fará
tudo para minar as iniciativas de
Kerry no que tange à política externa, sobretudo acerca do Iraque. Em outras áreas, pode-se dizer o mesmo. Nada indica que ele
possa mudar políticas e agradar
ao Congresso ao mesmo tempo.
Por exemplo, não será fácil para
ele obter a aprovação do Legislativo a um acordo que seja palatável
para o Brasil sobre a Área de Livre
Comércio das Américas [Alca].
Teremos de esperar para ver o
talento do político Kerry num
posto do Executivo. É mais difícil
trabalhar no Executivo do que no
Legislativo [Kerry é senador].
Não é fácil constituir coalizões em
Washington. Sem elas, é difícil
mudar a essência das políticas.
Folha - Após o 11 de Setembro, a
América Latina, exceto o México,
praticamente desapareceu da pauta política americana. É possível
que a região volte a ser privilegiada com Kerry, conforme ele já afirmou ser necessário?
Lindsay - Espero que sim, mas
não posso prometer que isso vá
ocorrer. Há algum tempo, o Iraque se tornou o tema internacional que fez que os outros desaparecessem da pauta política em
Washington. E o problema iraquiano não terá fim simplesmente por conta de uma mudança de
governo nos EUA. Assim, Kerry
será obrigado a cuidar do tema.
Em virtude de sua formação,
ademais, Kerry deverá privilegiar
as relações transatlânticas. E, infelizmente, um presidente não tem
tempo para tratar de todas as
questões possíveis. Até agora, o
virtual candidato democrata ainda não demonstrou que pretende
pôr a América do Sul no centro de
sua política externa, o que não é
um bom presságio para a região.
Creio que a América Latina venha a tornar-se mais importante
se Kerry for eleito, mas não tão
importante quanto deveria ser.
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