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"GUERRA SUJA"
Para o brasilianista, Washington retém documentos sobre regimes militares latino-americanos que o comprometem
EUA omitem elo com tortura, diz Skidmore
MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO
Embora tenha liberado na semana passada mais de 4.600 documentos reveladores sobre suas
relações com a ditadura militar da
Argentina (1976-83), o governo
dos EUA seleciona com cautela os
fatos que deseja tornar público.
"O mais importante para o Departamento de Estado é provar
que não houve ligação direta entre o governo americano e os torturadores", diz Thomas Skidmore, historiador brasilianista norte-americano, professor emérito da
Universidade Brown, nos EUA.
Para ele, as provas da ajuda de
Washington à repressão na América Latina estariam nos arquivos
da CIA e do Pentágono, que não
foram liberados.
Os novos documentos trazem
detalhes sobre as violações dos direitos humanos durante a "guerra
suja" na Argentina. Mostram
também a extensão dos programas de cooperação entre os regimes militares sul-americanos -o
Brasil incluído- para a repressão, no que ficou conhecido como
Operação Condor.
Skidmore, autor de, entre outros livros, "Brasil: De Getúlio a
Castelo" (ed. Paz e Terra, 1969) e
"Brasil: De Castelo a Tancredo"
(idem, 1988), conversou com a
Folha, por telefone, sobre a importância do arquivo.
Folha - O sr. acha que os arquivos
jogam nova luz sobre esse período?
Thomas Skidmore - É difícil dizer, pois o Departamento de Estado é mais ou menos fácil [de liberar documentos". Há também a
CIA, o Pentágono e o Tesouro.
Sem dúvida houve forte ligação
entre a CIA e os serviços de inteligência latino-americanos. Mas essas provas documentais são muito difíceis de se obter.
Já se conseguiram, por exemplo, provas do envolvimento dos
militares americanos na Guatemala. O governo dos EUA pagou
a um general guatemalteco -um
torturador- para que desse informações sobre o seu país.
O interessante é ver como foi
possível aos países cair na ditadura e depois sair dela. Os EUA sempre deram cobertura às ditaduras.
Ficou um sentimento de culpa
-ou pelo menos uma parte do
governo teve esse sentimento.
Houve uma luta entre as repartições do governo: entre o Pentágono, a CIA, o Departamento de
Estado e a USIA [United States Information Agency, agência de
propaganda americana". A política americana não foi homogênea.
Folha - Os documentos liberados
mostram que os EUA exigiam dos
argentinos atenção aos direitos
humanos como condição para ter
crédito no FMI e ajuda militar. O sr.
crê que a situação brasileira tenha
sido semelhante nesse aspecto?
Skidmore - Provavelmente sim.
Isso não é dito explicitamente. O
governo americano sempre ficou
num dilema. Ele queria barrar o
comunismo e, ao mesmo tempo,
promover a democracia.
Na década de 70, achou que fosse mais importante impedir a penetração comunista e sacrificou
os direitos humanos.
Folha - Houve mudanças nessa
política após a chegada de Jimmy
Carter à Presidência, em 1977?
Skidmore - Houve sim. Ele estava buscando uma identidade para
a sua Presidência. Escolheu os direitos humanos. Mas isso foi completamente desvirtuado pela invasão soviética do Afeganistão.
O governo Carter conseguiu irritar os governos brasileiro e argentino. Além disso, houve uma
irritação maior quando a a primeira-dama foi ao Brasil para
condenar as violações aos direitos
humanos. Isso irritou muito, pois
era algo sem precedentes numa
nação machista como o Brasil.
Folha - O Departamento de Estado seleciona quais documentos libera. Essa triagem, no caso argentino, teve como objetivo apresentar uma boa imagem dos EUA?
Skidmore - Provavelmente. O
mais importante para o Departamento de Estado é provar que não
houve ligação direta entre o governo americano e o torturador.
Isso sempre foi um pesadelo. O
certo é que as provas dessas ligações existem nos arquivos do
Pentágono e da CIA.
Folha - Os EUA estavam envolvidos com torturadores?
Skidmore - Ninguém conseguiu
provar uma ligação direta entre o
governo americano e o torturador
brasileiro, argentino ou chileno.
Mas é óbvio que houve muita troca de informações. É bem possível
que a CIA tenha fornecido equipamento para a repressão. Por
exemplo: escutas telefônicas. Os
americanos adoram tecnologia.
Não tenho provas disso, mas tenho certeza de que houve ajuda
técnica dos americanos. Também
ofereceram treinamento, mas não
sobre como torturar. Os militares
brasileiros e argentinos, infelizmente, não precisam de aulas
americanas para praticar tortura.
Folha - Qual o papel do secretário
de Estado Henry Kissinger (1973-1977) com relação às ditaduras latino-americanas?
Skidmore - Kissinger é um homem muito inteligente, que tem
muita capacidade para iludir a
imprensa. Ele sempre criou a impressão de que não tinha nada a
ver com os acontecimentos mais
desagradáveis da repressão na
América Latina. O fato é que ele é
um realista que gosta de dizer que
é um idealista. Mas não tenho dúvidas de que ele estava muito bem
informado sobre tudo.
Folha - Kissinger deveria ser julgado por seu envolvimento com as
ditaduras da América Latina?
Skidmore - Acho que isso depende dos países em questão. Cada
país precisa encontrar uma resposta a isso. É uma questão da política e da psicologia, não só da lei.
Depende da política de cada país.
Folha - O governo brasileiro tem
interesse em abrir os arquivos do
Departamento de Estado sobre
aquela época?
Skidmore - Duvido, pois sempre
há nomes lá dentro que são muito
delicados. Sempre aparece o nome de alguém que ninguém sabia,
que é um vilão na história.
Folha - Qual a atuação dos governos Geisel (1974-79) e Figueiredo
(79-85) no que diz respeito aos direitos humanos e à cooperação
com outros países latino-americanos para a repressão?
Skidmore - Geisel parou a tortura dos presos políticos no Brasil.
Apesar disso, ele não gostava de
falar sobre direitos humanos. Figueiredo continuou com a abertura e fez a tentativa de expulsar
os torturadores do Exército. Tentou limpar as Forças Armadas.
Folha - Os documentos mostram
que, nos governos Geisel e Figueiredo, a Argentina tinha liberdade
para prender dissidentes seus no
território brasileiro, com a ajuda
do Brasil. Geisel e Figueiredo tinham conhecimento dessas ações?
Os serviços de segurança tinham
condições de cooperar sem o conhecimento do presidente?
Skidmore - Figueiredo era muito
mole, não gostava de despachar
com seus assessores. Mas, em geral, esses fatos importantes são do
conhecimento dos líderes políticos. Eles eram generais, e a segurança estava sob o controle das
Forças Armadas. Tinham controle do aparato militar. O mais provável é que soubessem e autorizassem essas atividades.
Folha - Que comparação se pode
fazer entre Brasil e Argentina no
período de 1975 a 1984?
Skidmore - A repressão na Argentina foi pior. Houve no Brasil
algo que quase não existiu na Argentina: os sobreviventes da tortura. Muitos brasileiros saíram do
país depois de torturados. Na Argentina, a saída era direto para o
cemitério ou para o avião que jogava corpos no oceano. O Brasil
saiu mais coerente como sociedade do que a Argentina, que tem
mais cicatrizes e desequilíbrios.
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