São Paulo, quarta-feira, 26 de junho de 2002

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TRANSIÇÃO

Deputados aprovam texto que prevê, pela primeira vez desde 1917, a comercialização fundiária; texto requer duas votações

Após 85 anos, lei russa permite vender terras

STEVEN LEE MYERS
DO "THE NEW YORK TIMES"

Uma década depois de iniciar sua transição para o capitalismo, o governo russo está agindo para desmantelar um dos mais duradouros legados da era stalinista: a coletivização das terras do país.
A Câmara Baixa do Parlamento russo, a Duma, aprovou um projeto de lei na sexta-feira que cria um sistema para a compra e a venda de terras pela primeira vez desde a Revolução Bolchevique de 1917. Mas a medida só foi aprovada após o governo aceitar uma emenda que proíbe estrangeiros de comprarem terras agrícolas.
Enquanto manifestantes contrários à venda de terras a quem quer que seja protestavam do lado de fora da Duma, o debate do lado de dentro ilustrava a profundidade das paixões que ainda pode despertar o lento movimento da Rússia em direção a uma economia de mercado, especialmente no que diz respeito às terras.
O líder comunista, Gennady Zyuganov, chamou o projeto de "um espetáculo vergonhoso". Já o vice-presidente do Partido Yabloko (liberal), Serguei Ivanenko, disse que a proibição da venda de terras a estrangeiros passaria ao mundo a mensagem de que a Rússia não está pronta para reformas econômicas.
Mas até mesmo o líder do partido governista Unidade, Vyacheslav Volodin, afirmou: "Estamos defendendo nossos conterrâneos. Achamos que nossos agricultores não conseguem competir hoje com cidadãos estrangeiros".
Apenas seis deputados votaram contra a emenda, mas a Câmara se dividiu ao votar sobre o sistema de comercialização das terras.
Os deputados aprovaram o projeto de lei por 245 votos a 150, no último estágio em que mudanças significativas no texto da legislação poderiam ser feitas.
O projeto tem de ser aprovado de novo pela Duma antes de passar para a Câmara Alta, ou Conselho da Federação, e ser assinado pelo presidente Vladimir Putin.
Na sexta-feira, os deputados aprovaram também uma emenda reduzindo de 35% para 10% a quantidade de terras que um indivíduo ou empresa pode ter em um distrito administrativo.
Putin descreveu as reformas nas leis de propriedade da Rússia como essenciais para o desenvolvimento econômico do país. Mas aqui, nos campos ao redor de Kursk, assim como na maior parte da região central do país, o legado de décadas de coletivização está profundamente enraizado.
A possibilidade de mudança apavorou agricultores e outros que permanecem leais ao sonho das "kokhozi", ou fazendas coletivas, que ainda operam mais de 90% das fazendas do país.
Eles temem sobretudo uma repetição da privatização corrupta das estatais russas nos anos 90.
Serguei Ivannikov, administrador do distrito de Kurchatovski, perto de Kursk, disse que a reforma agrária proposta será "silenciosa e lenta, mas representará, mais uma vez, a repressão da população". Ele lembrou que seu próprio avô teve sua fazenda confiscada em Voronej durante as brutais campanhas de coletivização de Josef Stálin (1879-1953) na década de 30 e afirmou que as consequências da "lei de Putin" não seriam diferentes.
Defensores da privatização afirmam que ela criará um verdadeiro mercado de terras e garantirá os direitos dos proprietários.
Mas muitos que conhecem de perto a situação no campo se queixam de que a legislação de fato prejudicará empreendimentos agrícolas de estilo ocidental que, com investimentos estrangeiros, começam lentamente a revitalizar a agricultura russa apesar do fato de que não têm direitos claros sobre a terra que cultivam.
"As coisas ficarão piores do que quando não havia nenhuma lei", disse o deputado Alexander Tchetvrikov, dono da Agroholding, empresa que opera 120 mil hectares de terra perto de Kursk.
Apesar de todo o progresso da Rússia na construção de uma economia quase capitalista, a reforma agrária se arrasta desde o colapso do comunismo, em 1991.
Em uma série de decretos no início dos anos 90, Boris Ieltsin dissolveu o controle estatal das fazendas coletivas, dando a seus trabalhadores ações das empresas.
Hoje, 12,8 milhões de russos têm essas ações, e a Constituição de 1993 lhes dá o direito de comprá-las e vendê-las. Mas, na verdade, elas não o podem fazer porque a maior parte das fazendas coletivas nunca chegou a dividir suas terras em lotes.
Uma das cláusulas mais polêmicas da lei proposta por Putin eliminaria o sistema que permite que acionistas arrendem suas propriedades a grandes empresas agrícolas em troca de uma taxa anual, geralmente paga em espécie. As empresas teriam de operar as terras em um sistema de truste, devolvendo todos os lucros aos proprietários. Economistas dizem que a cláusula aniquilaria a indústria nascente.
O rendimento médio das lavouras de grãos na Rússia em 2001 foi de 1,93 toneladas por hectare. Na Alemanha, a média foi de 7 toneladas por hectare.



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