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IMPRENSA
ONU cria país fictício para treinar profissionais que vão à guerra; aumenta procura por cursos preparatórios
Conflitos matam mais jornalistas em 2003
SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL AO "SUDISTÃO"
São 18h em Kurkulan, capital do
Sudistão. Um grupo de jornalistas
estrangeiros é conduzido a um
posto de controle da Unfisud, a
missão de paz da Organização das
Nações Unidas (ONU) neste país
arrasado por guerrilhas e divisões
internas desde a queda do Muro
de Berlim, em 1989.
Ao norte, rebeldes fundaram a
República do Novuskão, de maioria muladina, com capital na cidade de Novosukan. O sul, de maioria serodoxa, viu nascer a República Federativa do Sudistão, com
sede em Alejogrado. É no centro
que as duas forças se enfrentam e
é pelo centro que caminham os
jornalistas agora.
Às 18h05, o posto da ONU voa
pelos ares. Os repórteres correm
em direção ao atentado e logo
percebem que um carro-bomba
explodiu próximo a uma das guaritas dos capacetes azuis. Um
adulto muladino se feriu gravemente, assim como as três crianças que o acompanhavam.
Corta. O Sudistão, os muladinos
e os serodoxos nunca existiram,
os "feridos" são soldados-atores,
e, na verdade, o carro-bomba é
um velho Falcon argentino dos
anos 80. Tudo não passa de uma
encenação criada pelos organizadores do Curso Internacional para Jornalistas em Zonas de Conflito e Missões de Paz.
As aulas são ministradas numa
vila militar ao sul de Buenos Aires
pela ONU e pelo Centro Argentino de Treinamento para Operações de Paz (Caecopaz, na sigla
em espanhol). Teóricas pela manhã, com temas como "legislação
internacional", "uso de mapas",
"primeiros socorros" e "negociação em situação com reféns", viram uma mistura do jogo "War"
com psicodrama à tarde.
Os 43 jornalistas da turma da
qual a Folha participou há duas
semanas, vindos de 13 países da
América Latina (mais Espanha e
Caribe), teriam ainda de se proteger de tiroteios de fuzis, seriam sequestrados, vendados com sacos
pretos e algemados e levados para
valas cavadas no chão durante um
assalto de madrugada.
Sofreriam ainda "torturas" e teriam de matar seu próprio coelho
no meio da floresta e depois cozinhá-lo, sempre em situações-limite causadas por uma das duas
facções em litígio no "Sudistão",
cuja inspiração óbvia são as frágeis repúblicas dos Bálcãs.
O curso tem similares na Europa e nos Estados Unidos e surgiu
de uma constatação recente da
entidade mundial com sede em
Nova York: nunca morreram tantos jornalistas em conflitos como
ocorre nos últimos meses.
Segundo cálculos divulgados na
semana passada pela ONG Repórteres sem Fronteiras, são 31 os
repórteres feridos fatalmente em
conflitos até setembro de 2003,
contra 25 do ano todo passado.
Para o Comitê de Proteção ao Jornalista, foram 26 as vítimas em
igual período, contra 20 no ano
passado (os números variam porque cada entidade tem uma definição diferente de "conflito").
Os números gerais também
cresceram. De acordo com dados
publicados ainda na semana passada pela Associação Mundial de
Jornais, nos nove primeiro meses
deste ano, 51 jornalistas morreram em ação, contra 46 em 2002.
Guerra do Iraque
A Guerra do Iraque aparece como vilã, embora cada ano sempre
tenha um conflito principal que
responda por boa parte das mortes. Neste caso, em seus 42 dias de
duração, morreram 18 dos 900
jornalistas estrangeiros presentes
no país. Para se ter uma idéia, durante os 11 anos da Guerra do
Vietnã (1964-1975), perderam a
vida apenas 54 dos 6 mil profissionais da imprensa que cobriram o
conflito naquela região da Ásia.
Para o historiador Patrick Eveno, autor de "O Capital na Imprensa Francesa, de 1820 aos Nossos Dias" (Editions du CTHS,
2003), há cada vez mais não só
conflitos como também jornalistas dispostos a chegar mais próximos da linha de frente da batalha.
"Dessa maneira, os profissionais
se expõem cada vez mais", diz.
Já para Bill Hammond, historiador do Centro de História Militar
do Exército dos EUA, a guerra é
perigosa para quem quer que esteja na linha de frente, soldado ou
jornalista. "Talvez os repórteres
estejam em maior perigo, pois
correm os mesmos riscos que os
militares, mas não andam armados nem em veículos blindados."
E talvez seja por isso que a busca
por cursos de preparação para reportagens em zonas perigosas tenha explodido nos últimos meses.
No Reino Unido e nos EUA, em
que duas semanas de aula podem
custar de US$ 15 mil a US$ 20 mil,
o assédio dos futuros alunos mais
do que dobrou desde a Guerra do
Afeganistão, em 2001.
Na América Latina, o equivalente sai por US$ 600 graças ao subsídio da ONU, e a procura também
cresce a cada semestre.
"Depois da avalanche de mortos no Afeganistão e no Iraque, os
jornalistas estão se conscientizando de que não adianta apenas a
vontade de cobrir a guerra e o desejo de que tudo corra bem para
sobreviver numa situação dessas", disse à Folha Karen Marón,
29 anos, co-diretora do Caecopaz.
"É preciso muito preparo."
A jornalista argentina, que já
trabalhou no Oriente Médio e foi
sequestrada pelas Farc, na Colômbia, fez o primeiro curso e cuida da elaboração do currículo
desde o segundo. Hoje, são oferecidas quase três dezenas de cadeiras nos dez dias de duração. O resultado não é unânime.
"Confesso que esperava menos
teoria e mais prática", disse à Folha Yuli García Peña, repórter colombiana que atua na CNI Canal
40, emissora do México, e pretende cobrir a guerrilha na Colômbia
já no início do ano que vem. "Mas
o curso valeu para me mostrar o
quanto eu achava que estava preparada e na verdade não estou."
Dela discorda Juan Carlos Cruzado Castilho, repórter do diário
"El Peruano", de Lima. "Vi e ouvi
tantos relatos impressionantes
que perdi a visão romântica que
tinha da guerra", afirmou ele.
"Ninguém pode dizer que, na hora, não vai sentir medo." Principalmente quando começar a ouvir as primeiras balas de verdade.
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