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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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País dá sinais de recuperação, mas pobreza, desemprego e crise bancária não têm solução imediata

Economia respira entre luzes e sombras

DO ENVIADO A BUENOS AIRES

No auge da crise do ano passado, com os recursos de 7 milhões de argentinos retidos nos bancos pelo chamado "corralito" e panelaços à porta deles todos os dias, Michael Smith, o gerente do HSBC em Buenos Aires, fez a seguinte comparação para o jornal britânico "Financial Times": "Somos um pouco menos populares que "serial killers" [assassinos em série]".
Pouco mais de um ano depois, aberto o "corralito", era de se supor que houvesse uma retirada maciça de depósitos e que, por extensão, os bancos quebrariam. Afinal, quem deixaria dinheiro com "serial killers"?
Para surpresa mais ou menos geral, não foi assim: nem houve retiradas em massa nem os bancos quebraram.
Andrew Powell, da Escola de Economia Empresarial da Universidade Torcuato Di Tella, foi um dos que não se surpreenderam. Seu raciocínio é simples, mas ficou encoberto, no auge da crise argentina, pelas previsões catastrofistas.
"Há sempre um trade-off entre retorno e risco. Como o retorno argentino é muito elevado, sempre haverá quem deixe dinheiro nos bancos", diz Powell.
Claro: "Com taxas de juros nulas ou até negativas no Japão, de 1,3% nos EUA e de algo mais de 2% na Europa, é uma grande tentação endividar-se em ienes, dólares ou euros, vir a Argentina, trocar essas moedas por pesos e colocar a prazo fixo a taxas de 25% ao ano", escreve Jorge Oviedo, comentarista econômico do periódico matutino "La Nación", de Buenos Aires.
A sobrevivência dos "serial killers" não é a única surpresa a desafiar as previsões sobre a morte da Argentina, feitas no auge da crise.
Outras: o dólar não disparou (dizia-se que iria até a dez pesos; está em menos de três); não houve hiperinflação, e a recessão está terminando de mansinho.
A EIU (o braço investigativo da revista britânica "The Economist") calcula que o crescimento neste ano será de 4,4% (depois de uma queda fenomenal de 10,9% em 2002).
Não seria nada mal, depois de cinco anos de mergulho no mais fundo poço.
O problema é que a base de comparação é tremenda: de 1998 para 2002, a economia argentina encolheu 20%. Para comparar melhor: na Grande Depressão dos anos 1930-33, a queda econômica fora de 14%.
Na verdade, o desastre vem de antes, na análise de Javier Lindenboim, diretor do Centro de Estudos sobre População, Emprego e Desenvolvimento da Universidade de Buenos Aires e investigador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas.
"É importante não circunscrever a análise ao último ano e meio [desde a moratória e a desvalorização do peso]. Não foi nesse breve lapso de tempo que apareceu o desemprego nem foi nesse período que "nasceram" os milhões de pobres."
A culpa, prossegue Lindenboim, é do modelo implantado pelo ex-presidente e atual candidato Carlos Menem, a partir do início dos anos 90.
"A estratégia dominante nessa época, seguindo o caminho assinalado pela ortodoxia neoliberal e com a bênção dos organismos financeiros internacionais, foi desmontando grande parte da ainda subsistente capacidade produtiva industrial e empurrando a atividade econômica nacional para sustentar-se menos no componente real e cada vez mais na ficção financeira."

Luzes e sombras
Tudo somado, a Argentina chega a uma nova eleição hoje com recorde de pobres (54,3% da população do país), desemprego perto do recorde (17,8% do total da força de trabalho), em situação de calote com seus credores externos e com os bancos ainda com problemas.
Mas chega também com um princípio de retomada econômica. O país cresceu 5% no primeiro bimestre de 2003 sobre idêntico período de 2002.
No micro, o número de telefones celulares em uso aumentou em 338 mil aparelhos, nos últimos seis meses, para chegar ao total de 6,6 milhões de unidades. E as vendas na primeira semana da tradicional Feira do Livro foram de 30% a 40% superiores às do ano anterior.
Razões da incipiente retomada: "Deve-se principalmente ao tipo de câmbio", diz Powell, da Torcuato Di Tella.
De fato, a desvalorização cambial acaba provocando o efeito de inibir importações, com o que aumenta a produção doméstica para substituir o que se tornou caro demais para importar, e ainda ajuda na exportação, que se torna barata.
Facilita até o turismo interno, do que dá prova o fato de que, no verão deste ano, houve o maior movimento turístico no país dos últimos dez anos.
Lindenboim (UBA) acrescenta outros fatores: o subsídios aos desempregados (150 pesos mensais, ou R$ 160). "A pequena quantidade não é obstáculo para que tenha uma incidência na recuperação da demanda", diz.
Mais: mesmo o "débil e transitório" acordo com o Fundo Monetário Internacional (termina no próximo mês de agosto) "ajudou a reduzir os decibéis das tensões anunciadas".

Luz longínqua
Esse é o lado luminoso, se é que pode haver lado luminoso em uma crise do tamanho da que afeta a Argentina. Agora, o lado sombrio, antes que a luminosidade seja de fato sustentável.
"Resolvidos os problemas no sistema financeiro e com a reestruturação da dívida, a recuperação da economia nacional poderia ser sustentável. Sou otimista", diz Powell, que acaba de analisar um alentado estudo sobre a crise argentina lançado pelo Brookings, centro norte-americano de estudos.
Fácil de dizer, difícil de fazer. A moratória argentina foi a maior do mundo, envolveu um calote inicial de cerca de US$ 60 bilhões em bônus, aos quais se somaram mais US$ 27 bilhões, emitidos ou anunciados desde então.
Os credores são 700 mil, em sete diferentes jurisdições legais.
Powell, assim como a maioria dos candidatos presidenciais, acredita que, sem um desconto, não haverá hipótese de renegociação da dívida:
"A experiência de outros países mostra que é perfeitamente factível [o desconto], embora o caso argentino seja complexo, pela quantidade de instrumentos e de credores."
Mas, sem resolver a questão da dívida externa pública, tampouco se resolve o calote privado, estimado em US$ 40 bilhões e, por extensão, não se reabre o crédito para o setor privado.
Lindenboim, da UBA, reconhece que "a espada de Dâmocles sobre a economia é a imperiosa discussão sobre o modo de encaminhar o pagamento da dívida externa".
Mas consegue enxergar um lado até certo ponto luminoso mesmo nessa "espada": lembra que a Argentina pagou apenas US$ 6 bilhões aos organismos internacionais, o que fez com que a moratória, "apesar dos agourentos e interessados anúncios que se repetiram até o cansaço, se constituísse em um oxigênio nessa complexa situação".
Quanto aos bancos, alguns são "claramente insolventes", calcula Powell. Por uma razão simples: "60% dos ativos financeiros são créditos do poder público [que está em moratória"; a chave é saber qual é o valor desses ativos", diz o economista.
Mesmo que o tremendo obstáculo da dívida e do sistema financeiro seja ultrapassado, o retorno à luz na Argentina será demorado e penoso.
Basta saber que:
1) mesmo que o país cresça 5% ao ano nos próximos cinco anos, o desemprego não cairá muito em relação aos 17% atuais, constatou a equipe econômica em reunião na quinta-feira. "Serão necessárias políticas ativas do Estado para orientar investimentos para áreas intensivas em mão-de-obra", relata Julio Nudler, do jornal "Página 12", o único que acompanhou a reunião;
2) a Argentina precisaria crescer 4% durante cinco anos só para que a economia voltasse a ter o tamanho de 1988, calcula Powell.
(CLÓVIS ROSSI)


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