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País dá sinais de recuperação, mas pobreza, desemprego e crise bancária não têm solução imediata
Economia respira entre luzes e sombras
DO ENVIADO A BUENOS AIRES
No auge da crise do ano passado, com os recursos de 7 milhões
de argentinos retidos nos bancos
pelo chamado "corralito" e panelaços à porta deles todos os dias,
Michael Smith, o gerente do
HSBC em Buenos Aires, fez a seguinte comparação para o jornal
britânico "Financial Times": "Somos um pouco menos populares
que "serial killers" [assassinos em
série]".
Pouco mais de um ano depois,
aberto o "corralito", era de se supor que houvesse uma retirada
maciça de depósitos e que, por extensão, os bancos quebrariam.
Afinal, quem deixaria dinheiro
com "serial killers"?
Para surpresa mais ou menos
geral, não foi assim: nem houve
retiradas em massa nem os bancos quebraram.
Andrew Powell, da Escola de
Economia Empresarial da Universidade Torcuato Di Tella, foi
um dos que não se surpreenderam. Seu raciocínio é simples,
mas ficou encoberto, no auge da
crise argentina, pelas previsões
catastrofistas.
"Há sempre um trade-off entre
retorno e risco. Como o retorno
argentino é muito elevado, sempre haverá quem deixe dinheiro
nos bancos", diz Powell.
Claro: "Com taxas de juros nulas ou até negativas no Japão, de
1,3% nos EUA e de algo mais de
2% na Europa, é uma grande tentação endividar-se em ienes, dólares ou euros, vir a Argentina, trocar essas moedas por pesos e colocar a prazo fixo a taxas de 25%
ao ano", escreve Jorge Oviedo,
comentarista econômico do
periódico matutino "La Nación", de Buenos Aires.
A sobrevivência dos "serial
killers" não é a única surpresa a desafiar as previsões sobre a morte da Argentina,
feitas no auge da crise.
Outras: o dólar não disparou (dizia-se que iria até
a dez pesos; está em menos
de três); não houve hiperinflação, e a recessão está
terminando de mansinho.
A EIU (o braço investigativo da revista britânica
"The Economist") calcula
que o crescimento neste ano
será de 4,4% (depois de uma
queda fenomenal de 10,9% em
2002).
Não seria nada mal, depois de
cinco anos de mergulho no mais
fundo poço.
O problema é que a base de
comparação é tremenda: de 1998
para 2002, a economia argentina
encolheu 20%. Para comparar
melhor: na Grande Depressão dos
anos 1930-33, a queda econômica
fora de 14%.
Na verdade, o desastre vem de
antes, na análise de Javier Lindenboim, diretor do Centro de Estudos sobre População, Emprego e
Desenvolvimento da Universidade de Buenos Aires e investigador
do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas.
"É importante não circunscrever a análise ao último ano e meio
[desde a moratória e a desvalorização do peso]. Não foi nesse breve lapso de tempo que apareceu o
desemprego nem foi nesse período que "nasceram" os milhões de
pobres."
A culpa, prossegue Lindenboim, é do modelo implantado
pelo ex-presidente e atual candidato Carlos Menem, a partir do
início dos anos 90.
"A estratégia dominante nessa
época, seguindo o caminho assinalado pela ortodoxia neoliberal e
com a bênção dos organismos financeiros internacionais, foi desmontando grande parte da ainda
subsistente capacidade produtiva
industrial e empurrando a atividade econômica nacional para
sustentar-se menos no componente real e cada vez mais na ficção financeira."
Luzes e sombras
Tudo somado, a Argentina chega a uma nova eleição hoje com
recorde de pobres (54,3% da população do país), desemprego
perto do recorde (17,8% do total
da força de trabalho), em situação
de calote com seus credores externos e com os bancos ainda com
problemas.
Mas chega também com um
princípio de retomada econômica. O país cresceu 5% no primeiro
bimestre de 2003 sobre idêntico
período de 2002.
No micro, o número de telefones celulares em uso aumentou
em 338 mil aparelhos, nos últimos
seis meses, para chegar ao total de
6,6 milhões de unidades. E as vendas na primeira semana da tradicional Feira do Livro foram de
30% a 40% superiores às do ano
anterior.
Razões da incipiente retomada:
"Deve-se principalmente ao tipo
de câmbio", diz Powell, da Torcuato Di Tella.
De fato, a desvalorização cambial acaba provocando o efeito de
inibir importações, com o que aumenta a produção doméstica para substituir o que se tornou caro
demais para importar, e ainda
ajuda na exportação, que se torna
barata.
Facilita até o turismo interno,
do que dá prova o fato de que, no
verão deste ano, houve o maior
movimento turístico no país dos
últimos dez anos.
Lindenboim (UBA) acrescenta
outros fatores: o subsídios aos desempregados (150 pesos mensais,
ou R$ 160). "A pequena quantidade não é obstáculo para que tenha
uma incidência na recuperação
da demanda", diz.
Mais: mesmo o "débil e transitório" acordo com o Fundo Monetário Internacional (termina no
próximo mês de agosto) "ajudou
a reduzir os decibéis das tensões
anunciadas".
Luz longínqua
Esse é o lado luminoso, se é que
pode haver lado luminoso em
uma crise do tamanho da que afeta a Argentina. Agora, o lado sombrio, antes que a luminosidade seja de fato sustentável.
"Resolvidos os problemas no
sistema financeiro e com a reestruturação da dívida, a recuperação da economia nacional poderia ser sustentável. Sou otimista",
diz Powell, que acaba de analisar
um alentado estudo sobre a crise
argentina lançado pelo Brookings, centro norte-americano de
estudos.
Fácil de dizer, difícil de fazer. A
moratória argentina foi a maior
do mundo, envolveu um calote
inicial de cerca de US$ 60 bilhões
em bônus, aos quais se somaram
mais US$ 27 bilhões, emitidos ou
anunciados desde então.
Os credores são 700 mil, em sete
diferentes jurisdições legais.
Powell, assim como a maioria
dos candidatos presidenciais,
acredita que, sem um desconto,
não haverá hipótese de renegociação da dívida:
"A experiência de outros países
mostra que é perfeitamente factível [o desconto], embora o caso
argentino seja complexo, pela
quantidade de instrumentos e de
credores."
Mas, sem resolver a questão da
dívida externa pública, tampouco
se resolve o calote privado, estimado em US$ 40 bilhões e, por
extensão, não se reabre o crédito
para o setor privado.
Lindenboim, da UBA, reconhece que "a espada de Dâmocles sobre a economia é a imperiosa discussão sobre o modo de encaminhar o pagamento da dívida externa".
Mas consegue enxergar um lado
até certo ponto luminoso mesmo
nessa "espada": lembra que a Argentina pagou apenas US$ 6 bilhões aos organismos internacionais, o que fez com que a moratória, "apesar dos agourentos e interessados anúncios que se repetiram até o cansaço, se constituísse em um oxigênio nessa
complexa situação".
Quanto aos bancos, alguns são "claramente insolventes", calcula Powell.
Por uma razão simples:
"60% dos ativos financeiros são créditos do
poder público [que está
em moratória"; a chave
é saber qual é o valor
desses ativos", diz o
economista.
Mesmo que o tremendo obstáculo da dívida e
do sistema financeiro
seja ultrapassado, o retorno à luz na Argentina
será demorado e penoso.
Basta saber que:
1) mesmo que o país cresça 5% ao ano nos próximos
cinco anos, o desemprego não
cairá muito em relação aos 17%
atuais, constatou a equipe econômica em reunião na quinta-feira.
"Serão necessárias políticas ativas
do Estado para orientar investimentos para áreas intensivas em
mão-de-obra", relata Julio Nudler, do jornal "Página 12", o único que acompanhou a reunião;
2) a Argentina precisaria crescer
4% durante cinco anos só para
que a economia voltasse a ter o tamanho de 1988, calcula Powell.
(CLÓVIS ROSSI)
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