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ARTIGO
A guerra não tem de ser inevitável
MUSA AMER ODEH
ESPECIAL PARA A FOLHA
Um ano depois dos ataques de
11 de setembro, com os Estados
Unidos fazendo pressão a favor
de um ataque contra o Iraque,
embora nenhuma prova tenha sido apresentada da ligação daquele Estado com os terroristas, e
com Israel recrudescendo sua
guerra contra o povo palestino
enquanto o mundo parece olhar
para o outro lado, é lastimável ver
os advogados da guerra atiçando
ainda mais as chamas.
Em seu longo artigo datado de
11 de setembro, o sr. Nelson Ascher, articulista da Folha, começa
afirmando que o primeiro capítulo da Terceira Guerra Mundial havia começado.
Ele usa a teoria da conspiração
para explicar acontecimentos e
distorce argumentos para defender seus pontos de vista. Por outro lado, seu artigo foi mais uma
voz somada à daqueles que vêm
tentando desumanizar ou até demonizar toda uma cultura.
Isso é profundamente lamentável, pois pouco ajudou a explicar
aquele crime terrível. Nós, como
vítimas das ações diárias do terror
de Israel e que nas últimas décadas vimos muitas demolições e
destruições de edifícios e residências ("ground zero") em nossas
aldeias e cidades (o campo de refugiados de Jenin foi um deles, o
massacre de Sabra e Chatila está
completando 20 anos), sentimos a
angústia e a dor do povo americano e das famílias das vítimas.
Junto com todos os povos do
mundo condenamos os perpetradores de 11 de setembro e, antes
deles, os autores do bombardeio
em Oklahoma. Sentimos também
a necessidade de mudanças profundas nas teorias e nos conceitos
que estão alimentando o terrorismo, bem como naqueles que tentam erradicá-lo.
Se o artigo do sr. Ascher tinha a
intenção de anunciar a nova era
colonial do século 21, com o potencial de devastação que a acompanha, então temo que não tenha
dito nada de novo. O que ele apresentou, todavia, foram distorções
seletivas da realidade que ele utilizou a fim de depreciar Estados e
culturas, incluindo a Europa, numa tentativa de firmar sua posição. Ele anunciou um iminente e
destinado "caos internacional",
visto que nem mesmo dez poderosos Estados combinados podem derrotar os Estados Unidos
da América.
O sr. Ascher viu os Estados árabes representando o "fascismo islâmico" e a Europa discretamente
satisfeita com o que aconteceu aos
EUA porque ela não está totalmente contra os fundamentalistas. Ele anunciou até o "fracasso"
do modelo ou sistema europeu e
viu um imenso fosso separando
os EUA e a Europa. O sr. Ascher
quer que nós esqueçamos também as "obsoletas" comunidade
internacional e Justiça internacional.
A questão aqui não é o indiscutível imenso poder militar dos
EUA que, por si só, não pode tornar o mundo mais seguro e pacífico. Nem argumentos que ofendem culturas e acusam-nas de
fascismo, ou descrevem o atual
conflito como entre civilizados e
não-civilizados, ou políticas simplistas do bem e do mal, conosco
ou contra nós, resolvem qualquer
problema. O mundo inteiro tem
algum interesse nessa questão.
Ascher disse que Israel "reapareceu no século 20", ignorando
assim como foi esse "reaparecimento" e o fato de que Israel permanece a única "potência de ocupação" (nos termos da ONU), que
vem oprimindo o povo palestino,
cometendo massacres, limpeza
étnica, confisco de terras e de recursos naturais, bombardeando
civis, demolindo casas, cometendo assassinatos por meio de bombardeios de mísseis, praticando
punição coletiva contra uma população inteira, e a lista é longa...
Em termos legais, isso é chamado
de terrorismo de Estado.
É interessante observar como
Israel apressou-se a se identificar
com os EUA logo depois de 11 de
setembro a fim de impor sua própria agenda. Resistir à ocupação
passou a ser terrorismo, e isso foi
usado como um pretexto para desencadear uma invasão após a outra numa campanha de morte e
de destruição contra civis palestinos. Uma destruição sistemática
da sociedade palestina está em
curso agora, em que instituições
educacionais e públicas estão sendo destruídas, casas demolidas e
toques de recolher prolongados
estão privando centenas de milhares de pessoas de educação, liberdade de movimento e de trabalho. É isso que Israel está fazendo na Cisjordânia e na faixa de
Gaza ocupadas, onde metade da
população palestina vive abaixo
da linha de pobreza (a taxa de desemprego é de mais de 50%).
Os palestinos estão resistindo à
ocupação justamente como todos
os povos o fizeram em situações
similares em diferentes períodos
da história (um deles foi a Europa
contra a ocupação nazista).
Líderes israelenses que, depois
de 11 de setembro, declararam
que a "guerra de independência"
não havia terminado queriam
lembrar ao mundo que nessa
guerra contra o povo palestino,
como as guerras prévias (a catástrofe/Nakba palestina de 1948),
eles usarão o terrorismo e a limpeza étnica como fizeram antes,
mas agora o farão com o arsenal
mais sofisticado de armas fornecidas pelos EUA e, com certeza, o
estão fazendo.
Não se consegue ver "a obsessão
favorita e duradoura do mundo
árabe: a destruição de Israel", ou o
apoio da Europa a isso, especialmente à luz da iniciativa árabe para a paz, anunciada em março
passado em Beirute. A propósito,
Israel respondeu a essa proposta
em poucas horas, invadindo e
reocupando cidades palestinas.
Quando o sr. Ascher chama o
que ele descreve como obsessão
com judeus "o sintoma mais óbvio de uma cultura política doentia e demente", ele está claramente confundindo as coisas.
Evidentemente, para todos
aqueles que conhecem um pouco
de história, o conflito no Oriente
Médio nasceu somente quando
Israel desmembrou um país, expulsou mais da metade de sua população, depois ocupou o resto da
Palestina em 1967. O meio mais
curto para acabar com o conflito
agora é pôr fim a essa ocupação
de modo que o povo palestino
possa ter seu próprio Estado independente sobre 22% da Palestina
histórica, que foi ocupada em
1967, dando ainda uma solução
justa para o problema dos refugiados, de acordo com as resoluções da ONU.
O sr. Ascher, entretanto, crê que
existem apenas dois cenários: ou a
"vitória" de Israel ou "a devastação completa da vizinhança". Ao
pedir a morte dos Estados árabes,
uma vez porque eles são agora
uma ameaça aos EUA e, outra vez,
porque Israel deve ser vitoriosa
(por mais estranha que pareça essa lógica), ele navega farisaicamente para bem distante da razão
e abraça conceitos desastrosos.
Retirando-se de todos os territórios árabes que ocupa atualmente, Israel daria o primeiro
passo para acabar com o conflito
com seus vizinhos árabes. Isso pavimentaria o caminho para a estabilidade política e a prosperidade
econômica na região.
Terroristas e anarquistas têm
existido ao longo da história, mas
nunca se ouviu falar de uma religião "terrorista". Grupos ou indivíduos têm usado pretextos religiosos para suas ações, até guerras
foram travadas em nome da religião, quando os verdadeiros motivos eram políticos e econômicos. O elo que o sr. Ascher tenta
estabelecer entre o nacionalismo
palestino e o fundamentalismo é
totalmente infundado. Nosso povo aspira por liberdade, democracia e independência da ocupação
militar israelense, que é, em si
mesma, a forma mais completa
de terrorismo.
Longe de ser fundamentalista
ou intolerante, nossa sociedade se
orgulha de sua cultura e de seus
valores. Ações de indivíduos ou
grupos não justificam a demonização de uma nação inteira.
Criados, treinados e financiados
com bilhões de dólares pelos EUA
a fim de combater os soviéticos no
Afeganistão, Bin Laden e os "mujahedin", que eram os aliados dos
EUA e sem qualquer ligação com
os objetivos nacionais palestinos,
simplesmente se tornaram dispensáveis com o fim da Guerra
Fria. O Afeganistão foi então entregue a seus senhores da guerra e
virou uma nação em ruínas.
Liberdade e democracia não são
nem uma invenção dos EUA nem
seu monopólio. A Europa pagou
um alto preço por elas e inspirou
o resto do mundo a segui-la. Se o
mundo hoje quer preservar a liberdade e a democracia, fazer justiça, proporcionar desenvolvimento sustentado e paz para todos, então teorias supremacistas
são desnecessárias, bem como
um poder pessoal que determine
as leis e as implemente.
Não é preciso destruir tudo o
que foi criado até hoje e acordado
como princípios que salvaguardam os direitos humanos e as relações multilaterais governamentais nem regredir à política da força. O 11 de setembro será um
anunciador da Terceira Guerra
Mundial somente se nós abandonarmos tais princípios e permitirmos que as teorias supremacistas
prevaleçam. O mundo não precisa de advogados da guerra não
importam quais sejam seus motivos, agendas ou conceitos. Precisamos, pelo contrário, de mais
compreensão, cooperação e ação
multilateral. O Oriente Médio não
precisa de outra guerra que serviria somente para aumentar o sofrimento, o ódio e a amargura.
Precisa de muito trabalho para
que a paz e a justiça prevaleçam.
Musa Amer Odeh é embaixador da Delegação Especial da Palestina no Brasil
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