|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
O sociólogo alemão Ulrich Beck diz que crise dá força à "Terceira Via de direita" e que promessas de criar empregos são irreais
"Terceira Via de esquerda perdeu força"
JAVIER MORENO
DO ""EL PAÍS"
O emprego acabou. Não existe
trabalho para todos, e não voltará
a existir. Ou, pelo menos, não na
forma em que o conhecemos agora. Digam o que disserem os políticos, a verdade é que teremos de
nos adaptar à nova situação, criar
alternativas. Os empregos fixos e
que duravam toda a vida ficaram
no passado. Mas é possível mudar
nossa perspectiva.
Se admitirmos que, em lugar de
fechar portas, a crise do emprego
vivida nas sociedades avançadas
nos últimos 30 anos abre novas
possibilidades, tudo muda. É o
que afirmam alguns sociólogos
que se dedicam a tentar prever como será esse futuro que hoje podemos apenas intuir.
Ulrich Beck, 58, professor do
Instituto de Sociologia de Munique e da London School of Economics, autor de ""Freiheit oder kapitalismus" (liberdade ou capitalismo), é um deles.
Beck acredita que estejamos vivendo num mundo cada vez menos previsível, no qual as consequências das decisões -econômicas ou outras- dos governos,
das empresas e dos indivíduos são
cada vez mais difíceis de calcular.
Na opinião dele, existe a tentação, por parte dos Estados, de
transferir as consequências de tudo isso aos cidadãos.
Os Estados querem desmontar
as redes de segurança que eles
próprios ergueram, com grande
esforço, no século passado, deixando o cidadão sozinho para arcar com suas responsabilidades.
Beck reconhece que o título de
seu livro foi pensado como provocação. ""Acostumamo-nos a
considerar que existem dois fatores de liberdade -o capitalismo e
a democracia-, que eles podem
fundir-se numa única figura e que
não existem discrepâncias internas entre capitalismo e liberdade.
Acho que, sob muitos aspectos,
isso é verdade. Mas, se analisarmos a questão desde um ponto de
vista sociológico, vamos identificar uma certa tensão, uma certa
contradição que se nota com frequência cada vez maior."
Pergunta - Muita gente pergunta
se ainda podemos ter a esperança
de encontrar solução para alguma
coisa neste mundo.
Ulrich Beck - Eu estou entre os
poucos que pensam que ainda
existem soluções. Mas as soluções
não se encontram onde até agora
supúnhamos que estivessem. O
problema é que o Estado nacional
já não está em condições de formular soluções. Um exemplo é a
queda da receita fiscal, em função
da globalização. As grandes empresas já não pagam apenas impostos. Mas existe a possibilidade
de resolver o problema, mediante
a cooperação entre países. É nisso,
em última análise, que consiste o
experimento europeu.
Pergunta - É verdade, mas os problemas principais não têm solução
nem em nível europeu. O desemprego, por exemplo.
Beck - Naturalmente, há problemas que só poderão ser resolvidos
num contexto global, no qual todos terão de cooperar. Até agora
sempre pensamos muito em termos de política nacional. Essa lógica, e o realismo que a sustenta,
se mostra cada vez mais falsa, na
medida em que, nesse paradigma,
os problemas nem sequer aparecem. Chama-se a isso realismo,
mas na verdade é de uma irrealidade total.
Pergunta - De qualquer maneira,
o sr. já disse em outras ocasiões
que quem disser que será possível
haver pleno emprego estará mentindo. É verdade que não voltaremos a ter pleno emprego?
Beck - Ninguém pode arriscar
uma resposta agora. Os dados de
que disponho, baseados no desenvolvimento do mercado de
trabalho nas últimas três décadas,
indicam que a Europa vem sofrendo uma contração permanente do trabalho remunerado.
Quando se estuda a questão de
maneira empírica, fica claro que
existe na Europa uma situação de
divisão total: por um lado há todo
um setor que, como antes, continua a trabalhar em regime de
tempo integral; por outro, há uma
parcela cada vez maior do que poderíamos chamar de ""trabalho
frágil".
Isso quer dizer que esses trabalhadores não contam com a segurança de um contrato fixo, que
seu tempo se organiza de maneira
flexível e que, às vezes, eles precisam trabalhar em vários lugares
para manter o mesmo nível de vida.
Esse tipo de trabalho vem se
multiplicando de maneira notável
em todos os países nos últimos 30
anos. Na Alemanha, um terço da
força de trabalho tem empregos
frágeis; nos EUA e no Reino Unido, a metade. Mesmo onde ainda
existe a idéia do pleno emprego já
não se está falando tanto da forma
de trabalho antiga, em tempo integral. Algumas dessas novas formas podem ser avaliadas positivamente.
Pergunta - É verdade? Na Espanha, as pessoas ainda preferem um
contrato à moda antiga, em tempo
integral, quando possível.
Beck - Isso já não é possível. A
sociedade precisa se acostumar a
essa nova situação.
Pergunta - E o sistema político
não pode fazer nada.
Beck - Vamos voltar à questão
anterior: liberdade ou capitalismo. Que tipo de segurança é possível oferecer às pessoas? Como se
pode fundar uma família, organizar o dia-a-dia, assumir a responsabilidade de ter filhos, quando se
dispõe apenas de um contrato de
trabalho temporário?
Pergunta - Justamente: como?
Beck - Quem está nessa situação
deve ter claro que, embora continue aspirando a ter um emprego
tradicional, apenas uma parte da
sociedade vai conseguir tê-lo. Logo, é preciso organizar-se de outra maneira, ou então votar em
partidos políticos que levem esses
problemas a sério.
Existem possibilidades de combater o problema. A primeira é
transferir para o indivíduo os riscos da flexibilização do trabalho.
Outra consiste em refletir sobre
como se poderiam garantir as
condições de vida das pessoas, independentemente de seus empregos. A forma extrema seria pagar
um salário social. É uma utopia,
mas existem outras maneiras.
Acho que é preciso deixar de
pensar nas reivindicações sindicais antigas de trabalho para todos, porque cada vez há menos, e
começar a desenvolver essas novas maneiras de assegurar a subsistência das pessoas. É possível. É
preciso apenas pensar como torná-las praticáveis, como financiá-las, etc.
Outra possibilidade consiste em
tentar novas formas de trabalho,
além do trabalho remunerado,
que sejam atraentes, reforcem a
identidade do indivíduo e lhe
dêem a oportunidade de fazer algo que faça sentido na vida. O importante não é apenas o dinheiro,
mas também o reconhecimento
de participação social.
Pergunta - Soa atraente. Mas então entra a política no meio, e tudo
se complica. O sr. disse que, dois ou
três anos atrás, se decepcionou
com a Terceira Via. O sr. continua
decepcionado?
Beck - Meu amigo Anthony Giddens fez um trabalho maravilhoso
ao formular a Terceira Via.
Pergunta - E mesmo assim...
Beck - Mas ele cometeu um erro
na escolha das palavras, pois, em
última análise, a formulação da
Terceira Via foi dos políticos. É
uma invenção de Clinton ou de
Blair, não está claro de quem. Giddens se distanciou um pouco do
conceito. O que ele queria, assim
como eu quero, era formular uma
resposta política a uma situação
histórica nova. Mas ele continua
aceitando o postulado de que o
pleno emprego é possível. Ou a de
que, em última análise, a instância
na qual os problemas se resolvem
é a do Estado nacional.
Pergunta - Falando de políticos,
tenho a sensação de que existe
pouca relação entre eles e os cientistas sociais, como o sr., que se dedicam a esses problemas.
Beck - Há grandes discrepâncias
entre as discussões que acontecem nessas redes intelectuais e a
forma em que isso se traduz em
propostas políticas. Tenho a impressão de que esse processo fosse
mais intenso três ou quatro anos
atrás. Depois se produziu um certo distanciamento. Não está claro
para mim por que isso aconteceu.
Por exemplo, Gerhard Schröder
já esteve sentado aí onde o senhor
está.
Pergunta - Nesta mesma cadeira?
Beck - Sim. Ele ainda não era
nem candidato a chanceler [premiê alemão" pela primeira vez.
Falamos de todos esses problemas. Ele concordou comigo em
que é impossível alcançar o pleno
emprego e que é preciso começar
a pensar em alternativas. Mas nada disso restou em sua política.
Pergunta - Não se pode dizer em
público que não está ao alcance da
política garantir o pleno emprego.
Beck - Mas ele poderia dizer que
estão sendo estudados projetos
alternativos. Queremos o pleno
emprego, estamos tentando consegui-lo, mas, enquanto isso não
acontece, oferecemos alternativas.
Pergunta - O sr. acha que é assim
que se ganham eleições?
Beck - Seria possível fazê-lo, com
grupos muito específicos. Acho
que os jovens, por exemplo, estão
muito frustrados com a política,
porque não vêem refletidos nela
seus próprios valores. A mesma
coisa acontece com os aposentados. Como eles poderiam utilizar
seus conhecimentos e interesses?
Os desempregados, etc. Se tudo
isso fosse bem feito, poderia ser
formulado como uma oferta que
tornaria alguns partidos atraentes
outra vez. Muitas pessoas estão
mais dispostas a lançar-se em
mudanças radicais do que o estão
os partidos políticos. Muitas pessoas sabem que as receitas velhas
já não funcionam mais.
Pergunta - Os partidos políticos
também sabem disso. Na realidade, parece que já está começando a
surgir uma Terceira Via invertida:
da direita para a esquerda. Uma
Terceira Via conservadora.
Beck - Sim, acho que é uma possibilidade. Começa-se a notá-lo
em todas as áreas. Mas pense em
outro ponto. Se observarmos a
história da Europa, veremos que,
na realidade, foram os partidos
conservadores que possibilitaram
um certo cosmopolitismo. Na
Alemanha foi Adenauer, na França, De Gaulle; na Itália, outros,
que também vinham da tradição
cristã, liberal e conservadora. Não
existe apenas o cosmopolitismo
de esquerda. Também existe um
cosmopolitismo de direita.
Pergunta - Essa tentativa de estabelecer uma Terceira Via vinda da
direita seria uma reação ao sucesso
de Blair e Schröder?
Beck - Exatamente. Está cada vez
mais difícil distinguir Berlusconi
de Blair e está cada vez mais complicado traçar as linhas divisórias
entre as diferentes posições. A
Terceira Via de esquerda, a esquerda neoliberal, a de Blair, para
que fique claro, está sendo pressionada pelo potencial político do
problema da imigração. Infelizmente, o sonho de uma Terceira
Via de esquerda perdeu força.
Pergunta - Tampouco há muita
diferença em relação à questão do
terrorismo internacional.
Beck - Trata-se de uma questão
que não pode ser resolvida no
contexto nacional. Os próprios
Estados Unidos, a maior potência
militar do planeta, equipararam
de maneira natural sua segurança
nacional com a segurança mundial. Portanto, inclusive os EUA
precisam cooperar na solução
desses problemas, embora essa
colaboração se defina de forma
muito unilateral. Em outras palavras, para resolver problemas nacionais, até mesmo os EUA precisam tentar, de alguma maneira,
criar instituições que ultrapassem
o âmbito nacional.
Na Europa, temos o problema
de não dispormos de uma força
militar européia. A Otan não é um
Exército europeu. É uma condição necessária.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Artigo: A guerra não tem de ser inevitável Próximo Texto: União Européia: Acordo entre Paris e Berlim salva a expansão da UE Índice
|