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ENTREVISTA
Para o renomado historiador Jonathan D. Spence, é precipitado dizer que a China será a grande potência do século 21
Futuro chinês terá inúmeros obstáculos
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A China não será a maior potência, mas uma das grandes potências, do século 21, visto que seus
problemas serão tão importantes
quanto as oportunidades que ela
terá e haverá países emergentes,
como a Índia, e blocos econômicos, além das potências já existentes, que deverão pôr em xeque as
conquistas e as intenções do país.
A análise é do renomado historiador britânico Jonathan D.
Spence, diretor da Universidade
Yale (EUA), uma das maiores autoridades em China do mundo e
autor de "The Gate of Heavenly
Peace: The Chinese and Their Revolution 1895-1980" (o portão da
paz celestial: os chineses e sua revolução 1895-1980), "Em Busca
da China Moderna" e "Mao".
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
Folha - Muitos especialistas sustentam que a China será a grande
potência do século 21. O sr. concorda com essa análise?
Jonathan D. Spence - Não creio
que isso seja inevitável. Afinal, durante todo o século, os problemas
da China serão comparáveis às
oportunidades que ela terá, visto
que se trata de um país imenso.
Além disso, não podemos negligenciar as outras prováveis novas
potências do século, como a Índia, as que já existem, como os
EUA, os grandes blocos econômicos, como a União Européia, e os
blocos emergentes, como o Sudeste da Ásia. A China enfrentará,
portanto, muitos rivais tanto na
esfera política quanto na econômica, o que deverá resultar num
maior equilíbrio de poder.
Folha - Quais serão os principais
problemas que a China enfrentará
neste século?
Spence - Há inúmeras questões
importantes, mas, certamente,
existirão outras que ainda não
imaginamos. A questão da manutenção da lei e da ordem num país
de 1,3 bilhão de habitantes será
crucial. As fronteiras também são
uma preocupação para os chineses, já que a China tem vizinhos
bastante instáveis a oeste de seu
território e problemas territoriais
com seus vizinhos do sudeste.
É necessário salientar ainda o
provável problema que o país terá
com separatistas radicais, sobretudo muçulmanos fundamentalistas, no oeste de seu território.
Há, logicamente, os desafios econômicos, pois os chineses ainda
não tiveram sucesso em seu enorme esforço para desmantelar o
sistema industrial estatal.
Obviamente, por conta da dimensão de sua população e do
crescimento desordenado das zonas urbanas, a China também terá
de enfrentar a escassez de terras
aráveis. A China já tem hoje menos espaço arável que os EUA, o
que deverá constituir um problema para o país a médio e longo
prazos. Com isso,
os chineses serão
compelidos a importar muito mais
alimentos do que
importam hoje.
Aliás, no que se
refere à sua balança comercial
-que apresenta
superávits extraordinários
atualmente [descontado o frete,
cerca de US$ 30
bilhões em
2002]-, o país
também poderá
ter problemas, já
que suas exportações são compostas por produtos
baratos de consumo de massa. Assim, outros países
de mão-de-obra
barata poderão
minar a força das
exportações da
China, visto que não é difícil copiar seus produtos.
Há ainda o problema político,
pois os chineses não têm hoje um
governo representativo. No que
concerne a essa questão, tudo dependerá do modo como o Partido
Comunista se ajustará à realidade.
E a militarização do Estado terá
de ser reduzida. Finalmente, não
podemos esquecer que a situação
de Taiwan permanece relativamente tensa, já que a ilha continua a ser considerada uma Província rebelde por Pequim.
Folha - Como o sr. vê a intenção
do presidente de Taiwan, Chen
Shui-bian, de realizar um referendo para saber se os eleitores aprovam uma moção para pedir à China
que retire as centenas de mísseis
que tem apontados para a ilha?
Spence - Há muito tempo, especialistas em China dizem que, no
que diz respeito ao país, um referendo é sempre o pior modo de
agir. Afinal, ele faz com que as
questões pareçam ser apenas de
uma forma ou de outra, enquanto, na verdade, elas são bem mais
complexas. O melhor modo de
proceder é a negociação política,
não o referendo, que parece ser
uma opção populista.
Ademais, há a enorme quantidade de investimentos de Taiwan
na costa da China que está em jogo. Não se trata de uma questão
simples. O referendo, embora pareça ser lógico, pois dá à população o direito de decidir, não é a
melhor forma para resolver um
problema geopolítico tão complexo quanto esse.
Folha - Como a situação de Taiwan evoluirá neste século?
Spence - Se não houver um enfrentamento mais grave por conta
do populismo dos líderes taiwaneses ou de um ato precipitado
dos chineses, o cenário mais provável é o de uma
aproximação ainda maior entre
Taiwan e a China,
sobretudo no
campo econômico. É até possível
que a ilha acabe
conseguindo ter
uma estrutura semi-independente,
uma espécie de
variação do status
atual de Hong
Kong. Até mesmo
uma estrutura
mais federativa
merece ser levada
em consideração.
No futuro, se os
líderes chineses e
taiwaneses entenderem de uma vez
por todas que têm
mais a ganhar do
que a perder com
a aproximação,
Taiwan poderá
gozar de uma situação bem menos delicada que a
atual. Trata-se, portanto, de um
caso em que intenções eleitoreiras
só tendem a atrapalhar a melhora
da situação. A questão também é
complicada porque há diferentes
visões da China em Taiwan, já que
os jovens se sentem menos "chineses" que os mais velhos e não
temem a força de Pequim como
seus ascendentes.
Folha - Em termos históricos,
quão comunista é o Partido Comunista da China atualmente?
Spence - Tudo depende de qual
sistema comunista estamos falando e de que época estamos analisando. Mas, se deixarmos de lado
as respostas acadêmicas, perceberemos que, no que concerne à
China, a questão é ainda mais
complexa. O sistema chinês é hoje
bem distante dos objetivos revolucionários traçados na primeira
metade do século passado ou dos
grandes movimentos de massa
orquestrados por Mao [Tse-tung,
líder da revolução chinesa de
1949] nos anos 50 ou 60.
Todavia ele ainda defende algumas das premissas do comunismo tradicional, como no que se
refere à sua liderança política ou à
sua vanguarda intelectual. Ainda
há o chamado "centralismo democrático" defendido por Lênin
[líder da revolução comunista na
Rússia], no qual o partido guia a
evolução do sistema. Ou seja, na
versão chinesa do "centralismo
democrático", os líderes políticos
continuam a tomar decisões pelo
país inteiro, sem debate.
Por outro lado, o governo chinês vem tentando modernizar-se,
dando mais força a líderes jovens
e altamente educados, como o
atual presidente [Hu Jintao]. Com
isso, o partido passa a ser uma espécie de escola para os futuros líderes políticos, mesmo que eles
não sejam verdadeiramente comunistas na acepção tradicional
da palavra. Eles recebem benefícios por estar no partido, mas são
obrigados a ler certas obras nem a
assistir a certos filmes. Muita gente faz parte do partido, porém não
mais crê no sistema comunista.
O Partido Comunista tornou-se, portanto, um local de afiliação
política local. Assim, as pessoas
fazem parte dele porque isso favorece suas carreiras. Contudo isso
não significa que elas sejam alvo
da doutrinação que existia há algumas décadas. Mesmo assim, as
pessoas que fazem questão de criticar abertamente o partido ainda
podem sofrer consequências graves por seus atos de rebeldia.
As relações do partido com o capitalismo estrangeiro também
são bem-sucedidas, o que faz com
que as pessoas pensem que não há
mais comunismo na China. O
ponto é que existe o comunismo à
chinesa, não o comunismo absoluto. O partido soube adaptar-se
e, com isso, pôde manter-se bastante influente na sociedade. Ademais, os militares continuam a
apoiá-lo, o que, obviamente, garante sua permanência no poder.
Folha - E quanto à Coréia do Norte? A China deixou de exercer forte
influência sobre Pyongyang?
Spence - A Coréia do Norte
constitui uma questão complicada para os chineses, que se tem
mantido estável há décadas, mas
poderá tornar-se explosiva. Pequim busca desempenhar um papel de mediação no que se refere
aos problemas norte-coreanos
desde o final da Guerra da Coréia
[1950-53]. A China também serve
de contrapeso para o Japão, que
invadiu a Coréia diversas vezes
nos últimos cinco séculos.
Como o Japão se tornou um
"inimigo" ainda maior da Coréia
do Norte por fazer parte da esfera
de influência dos EUA, a China
passou a ter mais influência sobre
Pyongyang. Todavia, como os
russos quase abandonaram suas
bases navais de Vladivostok [sudeste da Rússia], a China não precisa mais ter uma forte presença
naval na região. Por outro lado,
Pequim sabe que conseguiu desenvolver sua bomba nuclear sem
a ajuda dos ocidentais e não quer
ter um vizinho cheio de bombas.
Com isso, a China mantém uma
posição de mediação entre os interesses financeiros de Pyongyang e o medo dos EUA de que os
norte-coreanos utilizem seu potencial bélico contra a Coréia do
Sul ou contra o Japão. Na verdade, os chineses gostam de ver os
americanos preocupados com a
questão norte-coreana e, assim,
têm um papel de prestígio.
Folha - Embora tenha sido contrária à Guerra do Iraque, a China
manteve-se relativamente distante das graves disputas diplomáticas que a precederam. Por quê?
Spence - Os chineses são bons
diplomatas e não pensaram ser
necessário tomar uma posição
clara contra a maior potência
mundial, visto que os EUA eram
os maiores defensores do conflito.
A China não tem muito a perder
nem a ganhar com a questão iraquiana atualmente. O que interessa aos governantes chineses são as
ações militares dos EUA, sua precisão e suas táticas. Cada manobra militar americana é estudada
detalhadamente pelos chineses,
que querem aprender lições para
o futuro, pois poderão enfrentar
insurgências similares, sobretudo
no oeste de seu território.
O Oriente Médio interessa à
China a longo prazo, pois o país
terá enormes necessidades de
combustível fóssil. Os chineses terão de importar grandes quantidades de petróleo e de gás natural
para garantir seu
desenvolvimento
econômico, e o
Iraque será, nesse
caso, bastante importante. Assim,
Pequim mantém-se distante dos
problemas atuais
para não "queimar" suas futuras
fontes de combustível fóssil. Ademais, não devemos esquecer que
a comunidade
muçulmana chinesa é grande e
poderia não gostar de uma clara
posição contrária
ao Iraque.
Folha - Nesse
contexto, como andam as relações
entre a China e os
EUA? Alguns especialistas dizem
que, antes do 11 de
Setembro, havia uma lógica de enfrentamento entre Pequim e Washington. O sr. concorda com isso?
Spence - Não concordo com essa
análise, mas é claro que as relações entre os EUA e a China serão
tensas durante o século 21, já que
haverá vários pontos de disputa
entre os dois países. Como já disse, a Coréia do Norte poderá
constituir um problema para ambos, como Taiwan. Ademais, há
comunidades chinesas no sudeste
da Ásia que poderiam criar um
problema para os dois Estados.
O poder naval americano tornou-se mais fraco na região desde
que os EUA perderam suas bases
fixas nas Filipinas. Os chineses
têm mais espaço. Por outro lado,
não vejo a China com grande influência sobre a América Latina.
Há mais programas de ajuda ao
desenvolvimento para a região
provenientes de Taiwan que da
China. Esta tem mais programas
destinados à África.
Os chineses estão mais interessados em uma competição pacífica que em uma situação de conflito com os EUA, pois sabem que
um enfrentamento não lhes seria
positivo. É verdade que poderíamos dizer que a China projeta ter
um Exército bem maior do que
necessita internamente e, assim,
poderia sentir-se motivada a usá-lo em outros países, mas não creio
que esse seja o caso atualmente.
Folha - Quais são as chances de a
China democratizar-se a médio ou
longo prazos?
Spence - Elas são boas. Há inúmeras razões para dizer isso, como as transformações pelas quais
passa a sociedade chinesa, mas
talvez a mais importante seja o
número extraordinário de chineses que vivem em países democráticos. Eles mantêm contato
com seus familiares que vivem na
China e podem
acelerar a democratização da sociedade chinesa.
Além disso, há
inúmeras áreas da
sociedade que não
são controladas
pelo poder central. No campo,
por exemplo, o
governo consegue
cobrar impostos,
mas não consegue
impor suas idéias.
Outro fator que
poderá funcionar
como vetor da
modernização são
os diferentes movimentos religiosos, que ainda são
clandestinos, mas
ganham muitos
adeptos. Não podemos, portanto,
descartar a possibilidade de a China democratizar-se durante o século 21.
Na verdade, tudo dependerá do
modo de agir do Partido Comunista e de como suas ações serão
vistas pela sociedade. Afinal, é impossível conter a vontade de 1,3
bilhão de pessoas por muito tempo. E Hong Kong poderá funcionar como um vetor da modernização. A China comunista evoluiu
muito nos últimos 50 anos e evoluirá mais ainda nos próximos 50.
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