São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"EUA querem ser vistos como libertadores", diz Rice

RICHARD WOLFFE
JAMES HARDING
DO "FINANCIAL TIMES"

Numa estante de livros diante da mesa de Condoleezza Rice há uma foto do que parecem ser três bons amigos abraçados. De um lado está Tony Blair. Do outro, George W. Bush numa jaqueta de couro de aviador. Entre os dois, sorridente, está Rice, a assessora de Segurança Nacional de Bush.
A foto foi tirada em tempos mais felizes do que os atuais -em fevereiro de 2001, numa cabana rústica no retiro presidencial de Camp David. Mas o tema que dominou aquelas primeiras conversas entre o presidente americano recém-empossado e o premiê britânico hoje nos soa mais do que familiar: como conter o Iraque.
Mais de 18 meses mais tarde, Condoleezza Rice ainda está no cerne do que continua a ser uma coalizão de apenas dois países dispostos a entrar em ação militar para derrubar Saddam Hussein.
Essa coalizão limitada não é o que Rice e Bush tinham em mente antes de assumir o poder. Na realidade, a equipe de política externa de Bush criticou a Casa Branca de Clinton diversas vezes por ter permitido que a coalizão formada para travar a Guerra do Golfo, em 1991, se desfizesse. No entanto, depois de dois anos no controle da política externa americana, Bush e Rice enfrentam o mesmo desafio: como exercer o poder dos EUA contra o Iraque, num mundo que, em grande medida, não lhes dá seu apoio. Contra a oposição declarada dos Estados árabes e as dúvidas formuladas por Rússia, Alemanha e França, a Casa Branca se aproxima rapidamente de um momento decisivo.
Tendo desafiado a ONU a tomar uma atitude contra o Iraque, Bush terá agora de decidir se espera uma nova rodada de inspeções de armas pela ONU ou se desarma o Iraque à força.
No momento atual, em que o governo Bush fez uma nova declaração de missão mencionando o objetivo de sua "força inusitada e inigualada no mundo", os EUA se vêem divididos entre os desejos conflitantes de buscar aliados e agir de maneira independente.
Condoleezza Rice reconhece essa tensão. Numa entrevista que concedeu em seu gabinete na ala oeste da Casa Branca, ela disse: "O presidente realmente quer uma resolução do Conselho de Segurança que preveja medidas eficazes. Porque, agora, tendo dito que esta ameaça existe e que Saddam precisa obedecer, não podemos nos dar ao luxo de repetir o erro dos últimos 11 anos e permitir que ele nos escape outra vez".
É provável que essa decisão quanto a seguir adiante ou não com as inspeções da ONU defina o rumo futuro da política externa americana, tanto quanto ela definirá o destino do Iraque.
"Se o Conselho de Segurança não conseguir aceitar a proposta de uma ação decisiva, então os EUA e quem se dispuser a juntar-se a nós terão de cuidar desse problema", disse Rice.

"Libertadores"
Embora administrações americanas anteriores tenham ignorado a ONU -Clinton lançou ataques contra forças sérvias e iraquianas sem autorização da ONU-, Bush tem uma pauta muito mais ambiciosa e agressiva para defender o que chama de "triunfo da liberdade".
"Os EUA gostariam de ser vistos como libertadores", diz Rice, referindo-se ao Iraque. "E estou certa de que qualquer um que porventura se una a nós, o Reino Unido, a França ou qualquer outra das grandes democracias, também gostaria de ser visto assim."
Como deixa claro o primeiro documento da administração sobre a estratégia de segurança nacional, os EUA gozam de poderio militar sem paralelos e estão dispostos a fazer uso preventivo e unilateral desse poderio.
Ao mesmo tempo, a administração Bush acredita compartilhar com outras chamadas grandes potências -Europa, China, Rússia- valores comuns e um inimigo comum, sob a forma da "violência e do caos do terrorismo".
Em suma, Rice e Bush acreditam que possam ao mesmo tempo dominar outros países e construir alianças com eles. A supremacia militar dos EUA, argumentam, deve dissuadir outros países de tentar fortalecer seu próprio setor militar, acabando por favorecer a cooperação em outras áreas. A base da visão de mundo de Rice é sua velha área de conhecimento especializado, a Rússia. Já bem antes do 11 de setembro, Bush e Rice acreditavam poder criar com o presidente Vladimir Putin um relacionamento novo, mais flexível. Essa esperança mostrou ter fundamento quando Putin aceitou a retirada dos EUA do Tratado Antimísseis Balísticos, de 1972, e negociou reduções acentuadas nas armas nucleares estratégicas. Também mostrou dar certo quando os EUA enviaram tropas para as repúblicas ex-soviéticas da Ásia central, ao lançar sua guerra no Afeganistão.
Agora, porém, Moscou vem opondo resistência às pressões para que interrompa a construção da usina nuclear de Bushehr, no Irã, que Washington acredita ser central para os esforços de Teerã de desenvolver armas nucleares. Ademais, a Rússia faz oposição à proposta de que a ONU lance nova resolução contra o Iraque.
Os EUA, indica Rice, estão aplicando pressão tanto estratégica quando comercial, oferecendo a possibilidade de ajuda à indústria energética russa.
Mais incerta é a relação com a China. A análise das grandes potências, conforme articulada por Condoleezza Rice, busca um relacionamento construtivo, mas reconhece que existem "várias preocupações estratégicas", especialmente no sul da Ásia e em Taiwan. É ali que os EUA esperam que a superioridade militar avassaladora vá dissuadir a China de entrar numa corrida armamentista, dedicando seus recursos à busca de prosperidade econômica para sua imensa população.
Mas, no momento em que se prepara para enfrentar o Iraque, o governo Bush enfrenta uma pergunta difícil: por que agora? O que, na natureza da ameaça de proliferação, mudou a ponto de exigir o uso imediato da força?
Afinal, foi a própria Rice, em 2000, que disse que os "Estados delinquentes", incluindo o Iraque, estavam "vivendo com tempo emprestado, de modo que não é preciso criar um pânico em torno deles". "Em lugar disso", escreveu na revista "Foreign Affairs", "a primeira linha de defesa deve ser a afirmação inequívoca de dissuasão: se eles realmente se dotarem de armas de destruição em massa, elas não poderão ser usadas, porque qualquer tentativa de fazê-lo provocará a obliteração nacional". Rice diz, hoje, em tom de brincadeira, que ela escreveu, na época, na condição de acadêmica (ela era diretora da Universidade Stanford), e que "acadêmicos podem escrever qualquer coisa". Mas ela também acha que os tempos mudaram.

Sem aviso prévio
Rice acredita que, ao descartar as doutrinas de contenção e dissuasão que marcaram a Guerra Fria, os EUA ingressaram numa era em que não podem prever como o inimigo irá se comportar, como podiam fazer com a URSS. "Depois de 11 de setembro, é preciso levar em conta o número de ameaças que não podem ser impedidas. Não tivemos nenhum aviso prévio de 11 de setembro. Quando você lida com Estados hostis que são agressivos e têm capacidades altamente assimétricas com as suas, é possível que não receba nenhum aviso prévio."
Talvez seja essa a melhor explicação do porquê de os EUA terem adotado estratégia tão agressiva de segurança num momento em que seu poderio militar, político e econômico é inconteste. O 11 de setembro provocou uma mudança radical na confiança dos EUA naquilo que seu poderio pode realizar, tanto em termos segurança doméstica quanto em guerras em terras distantes.
Por baixo do conceito de um ataque preventivo contra o Iraque existe tanto o receio real de outro ataque contra os EUA quanto a convicção clara de que os EUA venceriam outro conflito de maneira tão decisiva quanto triunfaram sobre o Taleban. "Um fato interessante é que 11 de setembro esclareceu muitas coisas sobre o tipo de ameaça que enfrentamos no pós-Guerra Fria", diz Rice.
"Vejo a queda da URSS e o 11 de setembro como o começo e o fim de um processo. As pessoas se preocuparam em saber como seria a próxima ameaça e comentavam que talvez houvesse um desastre humanitário, talvez um conflito étnico. Fica claro que, na realidade, estamos falando em extremismo, em armas de destruição em massa, tecnologias que conferem uma vantagem assimétrica a países que não podem mobilizar um poderio militar grande, e o possível nexo entre eles."
Deixando de lado a estrutura militar, os EUA também querem enfrentar seu novo inimigo, o "extremismo", com meios mais brandos. A estratégia de segurança nacional enfatiza a importância tanto de ampliar o livre comércio quanto de aumentar a assistência aos países em desenvolvimento. Os EUA, diz Rice, estão comprometidos com o que ela chama de "a democratização ou o avanço da liberdade no mundo muçulmano". Ela observa, em tom de admiração, países que passam por reformas ou contemplam essa possibilidade, entre eles Bahrein, Qatar e Jordânia.
"Os EUA ocupam, sob muitos aspectos, uma posição incomum", ela argumenta. "Historicamente, existem apenas alguns poucos países que estiveram nessa posição, com uma preponderância do poderio militar", diz.
"Disso vêm certas responsabilidades de criar um ambiente em que determinados valores possam frutificar. Se a URSS tivesse vencido a Guerra Fria, não estaríamos falando no avanço da liberdade, mas no avanço de um conjunto inteiramente diferente de valores."

Tradução de Clara Allain



Texto Anterior: Artigo: Obsessão pelos EUA atrapalha nosso julgamento
Próximo Texto: Oriente Médio: Protestos marcam aniversário da Intifada
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.