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ARTIGOS
A guerra é uma falha da civilização
PETER BROOKS
ESPECIAL PARA ""LE MONDE"
O início da Primeira Guerra
Mundial, em agosto de 1914,
foi um choque pavoroso para todos os europeus pensantes -e
mais ainda para os intelectuais
cosmopolitas fluentes em várias
línguas, que viajavam com frequência e se sentiam igualmente
cidadãos das culturas francesa,
inglesa, italiana e alemã.
A guerra tinha se tornado algo
impensável num mundo marcado pelo progresso social e econômico acelerado, assim como pelo
triunfo aparente da hegemonia e
dos valores europeus sobre a
maior parte do planeta.
Sigmund Freud, admirador fervoroso de Sófocles e Shakespeare,
formado em Paris e Viena, era um
desses intelectuais.
Profundamente decepcionado e
deprimido pela guerra, ele sentou-se diante de sua mesa de trabalho, no início de 1915, para tentar explicar o sentido e as implicações da guerra num ensaio que intitulou ""Considerações Atuais sobre a Guerra e a Morte".
A primeira parte do ensaio é inteiramente dedicada à sensação
de despertar amargo após um sonho de civilização. ""Parece-nos
que nunca um acontecimento
destruiu tanto patrimônio precioso comum à humanidade, preocupou de tal maneira as inteligências mais esclarecidas, rebaixou
tão profundamente aquilo que
era elevado." Freud menciona a
esperança largamente difundida
de que os europeus teriam encontrado maneiras pacíficas de resolver seus conflitos.
Ele exprime seu assombro diante da barbárie desencadeada pela
guerra. Destaca particularmente
o paradoxo de ver Estados -movidos por um aparente desejo de
monopolizar a violência, ""como
se ela fosse o sal ou o tabaco"-
autorizando-se, em razão das circunstâncias, a cometer formas de
injustiça proibidas a seus cidadãos. Ele escreve: ""O Estado em
guerra se permite todas as injustiças, todas as violências, a menor
das quais desonraria o indivíduo".
Fica claro, porém, que, para
Freud, a ascensão da violência, da
traição e da inumanidade que anda de par em par com a guerra
também pode ser explicada. De
fato, a psicanálise vincula a existência de seres humanos civilizados e de sociedades bem ordenadas à renúncia das formas mais
""primitivas" de satisfação dos instintos. Todo indivíduo obrigado a
agir em conformidade com preceitos morais que reprimem seus
desejos instintivos ""vive psiquicamente acima de seus meios".
Vista sob essa perspectiva, a
guerra provoca a derrocada da renúncia e da repressão sobre as
quais se fundamenta a civilização
e das quais dependem suas realizações futuras. Com isso, ""todas
as aquisições morais se desfazem
em pouco tempo, e, em seu lugar,
ficam apenas as atitudes psíquicas
mais primitivas, mais antigas,
mais brutais".
O mais interessante e o mais desestabilizador nesse ensaio talvez
seja o que Freud diz sobre a mudança que a guerra induz na atitude das pessoas com relação à
morte. A civilização é, em boa
parte, fundamentada na consideração dada aos mortos, atitude de
deferência e de temor cuja origem
se encontra, sem dúvida, na experiência da perda de entes queridos. Assim, a civilização atribui
um lugar àquilo que gostaríamos
de expulsar de nossa vida: a realidade de nossa própria morte.
Mas a chegada da guerra destrói
esse lugar e nos faz retroceder à
postura primitiva, na qual negamos a realidade de nossa morte e
desejamos a morte de nossos inimigos. A guerra ""leva embora as
camadas de sedimento depositadas pela civilização e deixa subsistindo dentro de nós apenas o homem primitivo. Ela nos impõe
novamente uma atitude de herói
que não acredita na possibilidade
de sua própria morte; ela nos
mostra, nos estrangeiros, inimigos que precisamos derrotar ou
cuja morte é preciso desejar; nos
recomenda que mantenhamos a
calma na presença da morte de
pessoas amadas".
A decepção e a depressão suscitadas pela guerra (que, evidentemente, ainda iria se arrastar por
mais quatro anos) acabaram por
levar Freud a se indagar se não
corremos o risco de sermos forçados a ceder a essa volta a um primitivismo emocional.
""Não faríamos bem em reconhecer que nossa atitude com relação à morte, tal como ela decorre de nossa vida civilizada, nos ultrapassa do ponto de vista psicológico, e que seria preferível para
nós nos abstrairmos dessa atitude
e nos curvarmos diante da verdade?"
Pensamento amargo para qualquer apóstolo da civilização européia moderna. E a Grande Guerra
de fato imprimiu uma nova inflexão ao pensamento de Freud, que
se tornou mais sombrio, obrigando-o, particularmente, a dedicar
mais atenção à agressão e ao sadismo, o que o levou a descobrir o
desejo de morte como componente fundamental da vida instintiva do homem.
A guerra é uma tragédia da civilização. Pelo menos, porém, ela
pode contribuir à reflexão sobre a
psicologia humana -em seus aspectos mais trágicos.
"Danos colaterais"
A visão dos Estados Unidos da
América em guerra no raiar do século 21 é um choque para muitos
de nós. Como os europeus em
1914, tínhamos terminado por
acreditar que nosso país tivesse
renunciado à guerra como instrumento de política nacional. É possível que esta guerra seja de curta
duração e eficaz.
Mas a morte vai intervir, talvez
em número limitado entre nossas
próprias tropas, certamente em
número bem mais elevado entre
aqueles aos quais chamamos nossos inimigos (se tomarmos como
referência a primeira Guerra do
Golfo). Casas, cidades, infra-estruturas serão destruídas, e veremos a fome, as doenças, a miséria
nos campos de refugiados e orfanatos.
A grande ausente da maior parte das discussões sobre a segunda
Guerra do Golfo é a consciência,
por menor que seja, do custo humano da guerra. O que é totalmente omitido do discurso político atual é o reconhecimento do
caráter obsceno da guerra. Como
se tivéssemos regredido, sem perceber, para aquela forma primitivista de pensar a morte que Freud
identificou: nós mesmos devemos
ser heróis, e a morte de nossos inimigos é altamente desejável.
Não coloco em dúvida o desejo
de nossos dirigentes de reduzir as
perdas humanas ao mínimo e de
controlar, na medida do possível,
os chamados ""danos colaterais"
-doce eufemismo com o qual
designamos as inevitáveis vítimas
civis mortas ou feridas por engano. Mas seria mais honesto abordar aberta e totalmente a relação
que temos com a morte.
A guerra talvez seja um fracasso
na resolução de um conflito por
meios pacíficos. Ela é também
uma espécie de falha da civilização.
Peter Brooks, 64, é professor de literatura comparada na Universidade Yale
(Connecticut, EUA).
Tradução de Clara Allain
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