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CRIANÇAS
Conflito no Iraque invade o mundo de meninos de até 4 anos e provoca dúvida, angústia e o temor de ver uma bomba cair no quarto
No fogo cruzado
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
João atende o telefone. É Francisco. Deseja convidar o amigo
para um teatro. No meio do papo,
porém, o assunto muda.
- Você viu?, pergunta Francisco. A guerra começou.
- Aqui?!?
- Não, no Iraque. Muito longe
daqui. Bem pra lá de Paris.
Como João, Francisco tem apenas 4 anos e mora num bairro nobre de São Paulo. Nunca visitou
Paris, mas sabe que é longe porque a avó costuma ir à cidade.
"Fiquei surpresa quando ouvi o
diálogo", diz a artista plástica Mariana Marcondes, 29, mãe do menino. "Francisco só comenta com
João coisas que de fato lhe importam. Não achei que a guerra o
preocupasse. Na verdade, julgava
que meu filho ainda não pudesse
entender o conflito como algo
real. Pelo jeito, me enganei..."
De um modo ou de outro, a
ofensiva contra o Iraque está abalando também o cotidiano infantil. Crianças paulistanas manifestam, desde o primeiro bombardeio em Bagdá, dúvidas e medo
diante do confronto.
"Francisco quase não assiste à
TV", explica Mariana. "Em compensação, escuta nossas conversas e espia as fotos dos jornais e
das revistas que assinamos. Adora todas aquelas cenas de navios,
aviões e soldados. Deve ser principalmente assim, por caminhos visuais, que a idéia da guerra se
constrói na cabecinha dele."
A artista plástica, entretanto,
não pretende privar o garoto das
imagens. "No máximo, irei censurar as mais chocantes. Não vou
fingir que vivemos em um conto
de fadas."
Se Francisco apregoa que o Iraque é longe, Aline Mayumi Kanô,
10, desconfia do contrário. "Estão
jogando por lá uns mísseis imensos, que podem atingir o meu
quarto." Não podem, não. "Claro
que podem. Só não atingiriam se
Bagdá ficasse do outro lado do
mundo." Mas fica. "Sério? Pensei
que o outro lado
do mundo não
fosse tão perto..."
O colégio de
classe média que
Aline frequenta
-o Montessori
Santa Terezinha,
no Jabaquara (zona sul)- abriu espaço para a guerra
em sala de aula.
"Resolvemos estimular as discussões depois de notarmos que os alunos, mesmo os
menorzinhos, se
mostravam inquietos com a invasão anglo-americana", afirma
Nair Roseira, 52,
coordenadora pedagógica.
Os debates, conduzidos por
professores da terceira série em
diante, acalmaram um pouco os
ânimos. Geraram, ainda, uma
porção de colagens, redações e
desenhos sobre o tema. Os estudantes os produziram como uma
espécie de catarse, e a escola os espalhou pelos corredores.
"Essa guerra está me deixando
louca", revelou Aline no texto-desabafo que escreveu há cinco dias
[leia-o acima". Mal o exibiu à Folha, a menina ensinou: "O Bush
arrumou briga com o Saddam
por três razões -petróleo, religião e vingança".
Vingança? "Lógico. Quatro
anos atrás, o pai do Bush guerreou no Iraque e perdeu. O Bush
filho se zangou. Saiu perguntando
o motivo da derrota. Nem o Saddam nem o velho Bush responderam. O Bush filho,
então, declarou
nova guerra para
vingar o pai."
Outra aluna do
colégio -Fernanda de Paola
Rodrigues, 9-
teme que o ditador iraquiano decida usar o Brasil
como esconderijo. "Se o doido
vier, a bagunça
vem junto."
No entanto, o
que realmente a
incomoda são as
armas químicas.
"Morro de pavor." Pavor que a
fez abandonar o
sonho de viajar à
Disney. "Arma, sei bem o que é.
Química, sei mais ou menos. Tem
relação com remédio, certo? Imagine unir as duas coisas... Deve
provocar um estrago terrível."
Baleados
Na escola estadual José Raul Poletto, encontra-se igualmente
uma série de referências à guerra.
Ilustrações e poemas sobre o conflito se destacam em murais do
pátio. "Nossos meninos os criaram, incentivados pelos professores", conta a vice-diretora Maria
Aparecida dos Santos, 39. Com
1.700 estudantes, o colégio se localiza no violento e pobre Jardim
Ângela (zona sul).
Um dos poemas [veja-o abaixo"
confunde o leitor. "Há muito sangue/ Parece até filme:/ "Massacre
de Gangues"." Os versos descrevem Bagdá ou o próprio bairro?
"Ambos", resume a autora, Aline
Carolina Silvestre de Jesus, 15.
A rotina do Oriente Médio e a
da periferia se mesclam também
nos relatos dos alunos pequenos.
"Para atacar o Iraque, o avião do
Bush precisa cruzar o céu do Brasil. Sem querer, pode derrubar
uma bomba aqui", cogita Fernando Costa, 7. "Mas não tenho medo. Já conheço barulho de tiro."
"Eu tenho medo, sim", avisa
Andréia Caroline Santana Conceição, 9. "Antes, só me preocupava quando meu irmão saía do
colégio à noite. É arriscado, por
causa dos bandidos. Agora que
inventaram a guerra, tudo piorou.
Não durmo mais direito. Tranco a
porta do quarto, olho a janela, cubro a cabeça com o cobertor."
Terça-feira à tarde, balas perdidas feriram dois estudantes perto
da escola. Um dos garotos, de 9
anos, atingido na nuca, está em
coma. O outro, de 10, machucou o
braço. Sua irmã, de 11, angustia-se. "Via as batalhas na "Casa das
Sete Mulheres" e pensava: é um
problema do passado. Escutava a
vizinhança reclamar de tiros e não
acreditava que pegariam a gente.
Em uma semana, explodiu a guerra, e a bala sangrou minha família.
Não dou conta de tanto perigo."
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