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ARTIGO
Não é o véu, é a democracia
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
A Turquia ficou a apenas um
voto de viver o que o jornal britânico "Financial Times" havia
classificado preventivamente
de "golpe judiciário". Eram necessários 7 dos 11 votos do Tribunal Constitucional para tornar ilegal o AK (Partido Justiça
e Desenvolvimento), há seis
anos no governo, com amplo
respaldo eleitoral. Seis juizes
votaram pela ilegalização.
A falta de um voto evita uma
enorme crise. Mas expõe a natureza real do dilema turco: não
se trata do véu islâmico, principal pretexto para que o tribunal
decidisse julgar o AK, mas da
democracia, permanentemente ameaçada pelos militares,
que já intervieram três vezes no
funcionamento das instituições, sempre a pretexto de defender a laicidade da República
fundada por Kemal Ataturk.
A alegação é a de que o AK
tem uma "agenda oculta" para
islamizar a Turquia. Se a tivesse
de fato, já a teria explicitado,
após seis anos no poder. A suposta evidência da "agenda
oculta", ou a mais recente, foi a
decisão do governo de revogar a
proibição do véu em universidades e prédios públicos.
Parece muito mais democrático permitir que cada mulher
use ou não o véu, onde e quando quiser, do que proibi-lo. Em
nenhum país democrático, um
católico, por exemplo, é proibido de usar um crucifixo na aula,
no cinema ou no botequim.
Pode-se alegar que o uso do
véu é um manifesto político feito de tecido. Pode ser, em alguns casos. Mas uma pesquisa
feita pelo Eurobarômetro mostra que a adesão dos turcos a valores que o Ocidente preza -e o
islã supostamente despreza- é
às vezes superior à média européia (a pesquisa foi feita quando a União Européia tinha 15
membros, e não os atuais 27).
Os turcos ganham da média
em "respeito à vida humana"
(seis pontos mais), "respeito
aos direitos humanos" (nove) e
apreço à democracia (quatro).
Como 60% das turcas usam o
véu, é difícil atribuir o costume
a uma intenção política de afirmar o islã contra a democracia.
A batalha islamismo/laicidade, em parte resolvida ontem
pelo Tribunal Constituicional
(criação, aliás, de uma ditadura
militar), é no fundo parte de um
confronto maior pelo poder.
Senem Aydin Düzgit, pós-graduando pela Universidade
Livre de Bruxelas, resume o
quadro: a divisão tradicional na
Turquia se dá entre uma elite
burocrática, militar e empresarial, ferozmente a favor do Estado secular, e uma "periferia",
ou "forças provinciais com status econômico inferior e que
respaldam valores tradicionais" (portanto islâmicos).
É um cenário que vem dos
anos 70, mas que mudou a partir da década seguinte: "A urbanização e a migração não só fizeram tais grupos (a "periferia") mais visíveis como os
transformaram em fortes competidores pelo poder".
O véu, portanto, é só o pretexto para encobrir uma disputa de poder que o AK está ganhando. Disputa que se resolve
sempre melhor na democracia
do que com golpes, mesmo que
sejam "golpes judiciais".
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