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EUROPA
País debate despreparo da área de saúde e falta de atenção com os mais velhos, após onda de calor que matou mais de 11 mil
Morte de idosos na França revela descaso
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
Entre os mortos pelo intenso calor na França durante as duas primeiras semanas de agosto, 81% tinham mais de 75 anos. É o que indica o levantamento provisório
sobre o tamanho da tragédia, divulgado anteontem pelo Ministério da Saúde local. Impossível saber por enquanto quantos dos
11.435 mortos que o governo francês passou a admitir eram idosos
de idade inferior aos 75.
O calor já passou. A previsão
para hoje, em Paris, está bem mais
próxima do outono, com a mínima de 10C e a máxima de 20C.
No auge da canícula, no entanto, a temperatura máxima ultrapassava os 40C, e, por 15 dias, os
termômetros registraram, de noite, nunca menos que 23C.
Uma visão menos indignada se
concentraria no fato de os franceses não estarem preparados para
o calor excessivo. Ar-condicionado doméstico e ventiladores são
bem pouco frequentes.
Mas a morte em massa de idosos tem outras dimensões. Em
primeiro lugar, há o acúmulo de
corpos insepultos ou não reclamados por familiares. Vejamos.
Só em Paris foram mais de 1.700
mortos, dos quais 555 não tinham
sido ainda enterrados na última
quinta-feira. Entre eles, 220 não
tinham sido reclamados por familiares nem por amigos.
A maior parte dos franceses sai
de férias entre meados de julho e
meados de agosto. O que presumivelmente aconteceu no caso
dessas vítimas: eram pais ou avós
cujos filhos ou netos veraneavam
desatenciosos para com seus idosos. Foi tão grande a quantidade
de cadáveres insepultos que o Ministério do Interior precisou baixar uma portaria na qual suspendia a determinação segundo a
qual o prazo máximo para cremação ou enterro é de dez dias.
Há ainda o lado mórbido do armazenamento de seres humanos
num frigorífico reservado a carne
congelada em Rungis (Ceagesp
parisiense) ou em sete caminhões
refrigerados que a polícia precisou requisitar.
"450 mortos esquecidos. Somos
todos culpados." A recente manchete do jornal popular "Le Parisien" exagerou na quantidade.
Mas acertou no clima psicológico
da França no atual verão.
Contrariamente ao que ocorre
na Itália, na Espanha ou na Grécia, o idoso francês raramente
mora com a família. Não é considerado tecnicamente "isolado" se
estiver a menos de meia hora de
algum parente ou amigo próximo.
Mas Paris "exporta" seus idosos, diz ao jornal "Le Monde"
Jean Kervasdoué, um dos grandes
especialistas franceses em gestão
do sistema público de saúde.
Afastados para subúrbios ou cidades do interior, perdem a constância do vínculo com pessoas conhecidas e se tornam vulneráveis
em caso de emergência.
Em resumo: deixou de funcionar a relação de solidariedade
com os idosos. O que seria apenas
deficiência de afeto familiar acabou se tornando abandono que
poderia ter causado a morte.
A catástrofe também afeta a auto-estima do sistema público de
saúde francês, avaliado pela OMS
(Organização Mundial de Saúde)
como o mais eficiente do mundo.
A rede pública dispunha até o
ano passado de um mecanismo
exemplar de tratamento dos idosos, chamado APA, pelo qual os
pacientes eram atendidos em seus
domicílios.
A verba do APA foi cortada quase pela metade. O governo está em
regime de ajuste fiscal. É uma exigência do Banco Central Europeu,
gestor do euro, a moeda comum
européia. O APA a pleno vapor
poderia ter evitado muitas mortes.
A responsabilidade oficial, segundo consenso na mídia, também se deve à demora com que o
Ministério da Saúde reagiu e reconheceu a dimensão do problema.
Em 8 de agosto, o ministro da
Saúde ainda estava de férias.
Não é fácil avaliar a responsabilidade oficial num país polarizado
politicamente como a França. A
oposição sempre terá porta-vozes
matreiros. A Folha pediu ao setor
de estudos de saúde da União Européia um diagnóstico das deficiências na França. O responsável
respondeu que deverá esperar
que os franceses quantifiquem e
expliquem o problema. Ou seja,
não quis criticar.
A pirâmide etária francesa tem
engrossado na ponta. As pessoas
vivem cada vez mais. Um homem
chega em média a 75,6 anos, uma
mulher, a 82,9. Cada habitante
gasta por conta própria ou custa
ao Estado em saúde US$ 2.335 por
ano, e a saúde representa 9,5% do
PIB, segundo o anuário da OMS.
O primeiro-ministro Jean-Pierre Raffarin procura tirar proveito
do clima emocional e propor que
seu país adote solução semelhante
à que existe na Alemanha desde
1994: fundos de auxílio à terceira
idade seriam custeados por um
dia a mais de trabalho, que empresas e assalariados cumpririam
ao suprimir um dos feriados previstos no calendário local.
O que daria 5 bilhões (R$ 15,5
bilhões) para a terceira idade.
Uma primeira pesquisa indica
que dois terços dos franceses concordam com a solução.
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