São Paulo, domingo, 04 de março de 2001

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OMBUDSMAN

Outras palavras

RENATA LO PRETE

"Marta vai criar curso de francês na periferia", assegurou o título de uma reportagem no caderno Cotidiano de sexta-feira.
Não surpreende que a combinação Marta-francês-periferia tenha excitado o jornalista à procura de um enunciado vistoso. Mas quem se deu ao trabalho de ler o texto descobriu, logo no primeiro parágrafo, informação diferente.
A parceria acertada na viagem da prefeita a Paris "poderá viabilizar a implantação de cursos de francês" em regiões pobres de São Paulo. Marta manifestou a "intenção" de implantar escolas de idiomas na periferia. "Não tenho a mais leve idéia de quando vou começar isso", acrescentou. Com tantas ressalvas, em que se baseou a certeza do título?
Dois dias antes, outro contraste, na capa do jornal: "Agências vetam investimento na Argentina". Em seguida: "JP Morgan, Merrill Lynch e Bear Sterns aconselharam seus clientes a evitar a Argentina". Não é difícil perceber a distância entre as duas afirmações.
Os casos se assemelham a um terceiro, também ocorrido na capa e mencionado aqui há duas semanas. "Cai na segunda-feira" o veto do Canadá à carne brasileira, previa o título. Abaixo, no texto, o veto não "cai" mais. "Pode cair", de acordo com funcionário do Ministério da Agricultura.
No dia seguinte, em vez de reconhecer que se afobara, a Folha resolveu o problema com uma nova reportagem. Segundo ela, o entrevistado "recuara" de suas declarações (em essência, as mesmas que ele havia dado na véspera).
São exemplos em série a mostrar falta de critério na escolha das palavras, como se a limitação de espaço e o desejo de atrair leitura desculpassem toda sorte de distorções.
O descompasso entre título e texto é uma das manifestações do problema. Outra é o hábito de reescrever a história com pequenas mudanças de uma edição para outra, em uma espécie de telefone sem fio do jornal consigo mesmo. A cada dia a informação se distancia um pouco da original, até transformar-se por completo.
Quando voltou para o Corinthians, há pouco menos de um mês, Wanderley Luxemburgo disse que "a seleção é a consagração de qualquer treinador". Completou: "O Corinthians foi o clube que me projetou para a seleção. É sempre uma força muito grande".
Conclusão: "Luxemburgo vê time como trampolim para seleção". Forçada, sem dúvida, mas ainda é possível alegar que se tratou de interpretação.
Não no dia seguinte: "A declaração de que (o técnico) pretende usar o Corinthians como trampolim para voltar à seleção serviu para persuadir o grupo a se esforçar". Tal "declaração" jamais existiu.
A questão não é Luxemburgo, cujos negócios a Folha pode e deve investigar. Nem estabelecer se ele pretende ou não usar o clube. Importa é observar que o jornal, como quem não quer nada, coloca suas idéias na boca dos outros.
Há ainda a prática de repetir imprecisões até que se cristalizem. Não há texto que mencione o "dossiê Caribe" sem explicar que são "papéis sem autenticidade comprovada sobre suposta conta de tucanos".
Errado. São papéis que se mostraram falsos. Nada impede que existam outros, verdadeiros. O jornal que trate de procurá-los. Não vale é maquiar a definição para elevar o "valor de face" do material conhecido. Preciosismo? Só para quem desconsidera que do bom uso das palavras depende a credibilidade do jornal.



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