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Alarme desligado
A Folha publicou na capa de
Imóveis de domingo (31/8) uma
reportagem intitulada "Anistia", cujo subtítulo dizia: "Apesar de a prefeitura estimar em 2
milhões o número de imóveis irregulares em São Paulo, minoria
busca a regularização, cujo prazo termina em um mês".
Ao lado, um quadro instruía
"como e por que regularizar". No
texto, um representante de moradores reclamava que "faltou
divulgação da prefeitura" e uma
diretora ligada à administração
alegava que "a maioria deixa tudo para a última hora".
Como se vê, nada demais, a
não ser por um detalhe: a reportagem, versando sobre algo relacionado à gestão petista de São
Paulo, traz no alto a assinatura
de um jornalista (free-lancer)
que, desde o dia 13/8, ocupa o
posto de chefe de gabinete de um
vereador do PSDB (oposição).
E aí, sim, começa o problema
(o caso chegou, inclusive, à tribuna da Câmara Municipal).
A editora de Suplementos, Patrícia Trudes da Veiga, afirmou
na sexta-feira ter sido informada da nomeação do jornalista,
Sérgio Duran, "há uns10/15
dias", por ele próprio.
Na ocasião, explica, o free-lancer já havia escrito duas reportagens -essa sobre anistia e uma
outra sobre inspeção predial,
ainda não publicada.
Ela acrescenta que, na semana
anterior a 31/8, Duran fizera
ainda uma "atualização" de dados da reportagem sobre anistia.
Quanto à publicação da matéria, a jornalista não vê problema: "Além de isenta, é puramente de serviço: o passo-a-passo para regularizar o imóvel e as consequências de não regularizá-lo.
Foi "esquentada" (já estava pronta há dez dias) com números que
mostravam uma baixa adesão à
lei de anistia."
Mesmo defendendo o que se
fez, a editora de Suplementos
deixa claro: "Obviamente, ele
[Duran] não vai mais colaborar
com o caderno de Imóveis".
Duplicidade
Em meados do século passado,
era comum jornalistas terem
também outras ocupações, inclusive políticas (em governos ou
órgãos públicos).
A Folha, como boa parte da
imprensa, levou anos para quebrar o hábito e implementar, em
sua Redação, a não-aceitação da
"dupla militância", da dupla colaboração (com o jornal e com
um político ou autoridade).
Motivo principal: era preciso
tornar o jornal independente de
interesses externos, a fim de produzir um jornalismo crítico e
imparcial e afirmar, perante o
leitor, a sua credibilidade.
Se a prática ainda sobrevive
em parte da mídia do país (como
sobrevive a perniciosa existência
de "matérias pagas" por governos em veículos de comunicação
demonstrada em reportagem
publicada terça-feira pelo jornal,
no caso do Paraná), na Folha ela
foi severamente combatida.
É alentador, neste caso, que a
editora informe que o jornalista
não mais colaborará com o caderno (ao menos enquanto ocupar o cargo político que ocupa).
Concorre como atenuante, também, o adequado tratamento
jornalístico do texto.
Mas nada disso apaga a inaceitável duplicidade impressa
numa página do jornal -e
agravada pelo fato de o tema da
reportagem ser ligado à administração (petista) da capital.
Sérgio Duran, com quem também conversei -e cuja qualidade profissional e inteireza pessoal não estão em jogo aqui-,
adota a mesma visão da editora,
mas acrescenta um raciocínio
que merece reflexão:
"Existia um risco, sim, que
aceitamos correr por ser pequeno, tratando-se de uma reportagem inofensiva de serviço, com
um texto equilibrado".
Com efeito, ao "atualizar" o
texto com o mesmo repórter e ao
publicar o material em vez de
adiá-lo ou passar a outro jornalista a tarefa de refazê-lo, o jornal se expôs, ficou vulnerável à
crítica de falta de isenção. Assumiu um "risco" que, mesmo menor, não deveria correr.
Essa inusitada flexibilidade
("atualizar" uma reportagem
não é trabalho jornalístico?) e essa condescendência com o "risco" -em contraste com a rigidez que a Folha adota em casos
assim há pelo menos 20 anos-
são graves; passam a impressão
de que algum alarme está desligado ou defeituoso.
Afinal, se tanto tempo durou
-e ainda dura- a árdua implantação gradual de uma cultura de independência dentro da
Redação, é razoável supor que
um (indesejado) retrocesso nesse
trajeto também não ocorreria de
supetão, do dia para a noite,
mas sim lentamente, sem alarde,
calcado em eventos isolados
-como este, que, por isso mesmo, deve servir para a Folha, no
mínimo, como sinal de atenção.
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