São Paulo, domingo, 09 de abril de 2000


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Notícias de US$ 1

RENATA LO PRETE

Uma história local que possa ser comparada a fato ocorrido nos Estados Unidos sempre deixa a Redação excitada. De crimes a tendências de comportamento, notícias que carregam a mensagem "aqui como lá" têm lugar garantido no jornal.
Há exemplos em que o paralelo se justifica, tão disseminada é a influência americana sobre tudo que nos cerca. Em outros, o automatismo do raciocínio conduz a erros grosseiros de avaliação.
Na quarta-feira passada, uma chamada na capa da Folha reuniu dois casos, um relatado em Mundo e o outro no caderno São Paulo.
No primeiro, um homem havia sido condenado a 16 anos de prisão no Estado do Texas. De acordo com o título, "por furtar um chocolate" de US$ 1.
No segundo, uma advogada fora presa sob a acusação de levar o mesmo produto de um supermercado paulistano.
O texto traduzido das agências internacionais mostrou uma história que não correspondia exatamente ao título pitoresco. O homem tinha outras passagens pela polícia, estava em liberdade condicional e, embora o flagrante tenha precipitado sua desgraça, o motivo da condenação foi "conduta criminosa habitual".
Gostemos ou não dos rigores da legislação americana, é preciso reconhecer que a barra de Snickers não o levou à prisão sozinha.
Mas isso não foi nada perto do alarde feito com a história da advogada, que teria furtado chocolates importados no valor de R$ 55. Ela nega a acusação.
Cabeça de página. Foto. Nome completo também do marido. Descrição do apartamento da família. Opinião dos funcionários do Pão de Açúcar ("cliente assídua", ela "não dá gorjetas e é arrogante").
E, cúmulo da irresponsabilidade, nome da escola em que estudam suas três filhas. Como observou um leitor, "só faltou dar nome e foto das meninas".
Na crítica interna desse dia, perguntei onde estava o interesse jornalístico que justificasse tamanha exposição. Não obtive resposta.
Ao lado da associação um tanto forçada com o caso dos EUA, imagino que a chave para descobrir a lógica da edição esteja no seguinte trecho da detalhada reportagem:
"O crime causou surpresa entre policiais e funcionários da loja por causa do perfil da advogada. De classe média alta, ela chegou ao supermercado dirigindo um Mitsubishi importado preto".
Custo a acreditar que profissionais habituados ao contato com o público ignorem que pessoas furtam não apenas por falta de dinheiro.
É mais fácil imaginar a surpresa da Folha, disposta a enxergar novidade em coisas mais velhas do que andar para frente e relevância em histórias que se esgotam nas consequências para os envolvidos.
Mesmo que a advogada não tivesse rejeitado a versão da polícia e do supermercado, um registro, se tanto, teria dado conta do assunto. "Não merecia meia página nem no jornal do Pão de Açúcar", escreveu outro leitor. Como informação, a reportagem vale menos do que o chocolate surrupiado no Texas.


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