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Notícias de US$ 1
RENATA LO PRETE
Uma história local que possa
ser comparada a fato ocorrido
nos Estados Unidos sempre deixa a Redação excitada. De crimes a tendências de comportamento, notícias que carregam a
mensagem "aqui como lá" têm
lugar garantido no jornal.
Há exemplos em que o paralelo se justifica, tão disseminada é
a influência americana sobre
tudo que nos cerca. Em outros, o
automatismo do raciocínio conduz a erros grosseiros de avaliação.
Na quarta-feira passada, uma
chamada na capa da Folha reuniu dois casos, um relatado em
Mundo e o outro no caderno
São Paulo.
No primeiro, um homem havia sido condenado a 16 anos de
prisão no Estado do Texas. De
acordo com o título, "por furtar
um chocolate" de US$ 1.
No segundo, uma advogada
fora presa sob a acusação de levar o mesmo produto de um supermercado paulistano.
O texto traduzido das agências internacionais mostrou
uma história que não correspondia exatamente ao título pitoresco. O homem tinha outras
passagens pela polícia, estava
em liberdade condicional e, embora o flagrante tenha precipitado sua desgraça, o motivo da
condenação foi "conduta criminosa habitual".
Gostemos ou não dos rigores
da legislação americana, é preciso reconhecer que a barra de
Snickers não o levou à prisão sozinha.
Mas isso não foi nada perto do
alarde feito com a história da
advogada, que teria furtado
chocolates importados no valor
de R$ 55. Ela nega a acusação.
Cabeça de página. Foto. Nome completo também do marido. Descrição do apartamento
da família. Opinião dos funcionários do Pão de Açúcar
("cliente assídua", ela "não dá
gorjetas e é arrogante").
E, cúmulo da irresponsabilidade, nome da escola em que
estudam suas três filhas. Como
observou um leitor, "só faltou
dar nome e foto das meninas".
Na crítica interna desse dia,
perguntei onde estava o interesse jornalístico que justificasse
tamanha exposição. Não obtive
resposta.
Ao lado da associação um
tanto forçada com o caso dos
EUA, imagino que a chave para
descobrir a lógica da edição esteja no seguinte trecho da detalhada reportagem:
"O crime causou surpresa entre policiais e funcionários da
loja por causa do perfil da advogada. De classe média alta, ela
chegou ao supermercado dirigindo um Mitsubishi importado preto".
Custo a acreditar que profissionais habituados ao contato
com o público ignorem que pessoas furtam não apenas por falta de dinheiro.
É mais fácil imaginar a surpresa da Folha, disposta a enxergar novidade em coisas mais
velhas do que andar para frente
e relevância em histórias que se
esgotam nas consequências para os envolvidos.
Mesmo que a advogada não
tivesse rejeitado a versão da polícia e do supermercado, um registro, se tanto, teria dado conta
do assunto. "Não merecia meia
página nem no jornal do Pão de
Açúcar", escreveu outro leitor.
Como informação, a reportagem vale menos do que o chocolate surrupiado no Texas.
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