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OMBUDSMAN
Vacas e canarinhos
RENATA LO PRETE
O bicho da vez é a vaca,
mas há algo de canarinho no
tratamento que a imprensa dá
ao litígio precipitado pela decisão do Canadá de bloquear a
importação de carne bovina do
Brasil. O assunto é comércio. O
tom, no entanto, lembra o utilizado quando a seleção enfrenta
a Argentina.
A indignação só fez crescer ao
longo da semana passada. Na
sexta-feira, sete dias depois de
anunciado o embargo, o estado
de espírito podia ser medido pela
comparação, em editorial do
"Estado", do comportamento do
Canadá ao de uma "república
bananeira".
Até mesmo a Folha, habitualmente refratária a esses arroubos, entrou um pouco no clima.
"FHC dá prazo de 15 dias ao
Canadá", dizia o título principal
da capa de sexta-feira. Ao pé da
letra, nenhum problema: o presidente de fato mencionou esse período em entrevista ao jornal.
Mas por certo a Redação soube, antes de definir o enunciado,
que em outra entrevista, igualmente concedida na véspera, ele
ameaçou agir se um recuo não
ocorresse dentro de "15 dias a
três semanas".
Houve, portanto, meio de saber que o presidente não estava
tão decidido quanto ao limite de
sua paciência.
Por que, então, cravar o número na manchete? O que o jornal
dirá se, decorridos 15 dias, o Canadá não tiver suspendido a medida e ainda assim FHC considerar que é cedo para a "guerra"?
O exemplo pode parecer demasiadamente técnico, mas é revelador de inclinação para avançar o sinal e ser mais taxativo do
que a informação permite e a
prudência recomenda.
Não se trata de dar razão ao
Canadá. Até agora, nada confirma a alegação de que parte do
rebanho poderia estar contaminada pelo agente causador da
doença da "vaca louca", motivo
oficial do veto.
Nem de ignorar o estrago
-imediato e potencial- que o
bloqueio representa para as exportações brasileiras.
Também é preciso lembrar que
frases de impacto como as que se
ouviram de FHC e auxiliares
são, até certo limite de credibilidade, regra do jogo em disputas
de comércio exterior.
O mesmo vale para a vaca levada à embaixada do Canadá e
para o uísque canadense jogado
fora por donos de bares e restaurantes, ambas cenas armadas
para as câmeras.
Mas uma coisa é registrar declarações e gestos de protesto.
Outra é dar crédito excessivo ao
discurso do governo e só enxergar o que a ele interessa.
Na quinta-feira, quase todos os
jornais se apressaram em concluir, em coro com o Ministério
da Agricultura, que o quadro
havia mudado, pois o Canadá
anunciara a intenção de rever o
embargo tão logo fosse concluída uma "análise técnica da situação do rebanho".
Na manhã desse dia, enquanto
os diários falavam em "recuo" e
"solução rápida", o embaixador
dava entrevista de conteúdo
bem menos amistoso.
Na sexta, novo coro. Títulos
em toda parte destacavam que o
presidente "pode" não ir à próxima Cúpula das Américas caso
persista o veto.
Tudo "pode" acontecer, sem
dúvida. Mas, como disse o próprio FHC, muita água vai rolar
até abril, quando acontecerá a
reunião em Québec. Custa crer
que ele pretenda privar-se dessa
aparição internacional.
Chama atenção que, até ontem, ninguém tenha procurado
tirar a limpo a história do pedido de informações sanitárias
que teria chegado aqui há meses
e ficado sem resposta. O Canadá
diz que mandou; o Brasil diz que
não recebeu.
Não que o documento sirva
para justificar o embargo, em tudo relacionado à disputa que
Bombardier e Embraer, empresas do setor aeroindustrial de cada um dos países, travam na Organização Mundial do Comércio. A questão é a deliberada falta de curiosidade.
Da mesma forma, a maioria
das reportagens repete que a suspeita de contaminação não procede sem se dar ao trabalho de
esclarecer por quê, como se nem
explicação coubesse.
Entretida com o aspecto anedótico da história, a imprensa se
esquece da obrigação de fazer
perguntas.
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