São Paulo, domingo, 11 de março de 2001

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RENATA LO PRETE

"Seis pessoas morreram assassinadas dentro de uma loja de assistência técnica para celulares em São Paulo, a maior chacina do ano no Estado."
Quantas vezes você encontrou na Folha um texto com abertura semelhante a essa da edição de quinta-feira? Se é leitor assíduo, muitas, porque todas as reportagens do jornal sobre o assunto se parecem.
O que não significa que as chacinas sejam todas iguais. Basta conferir o início da matéria no "Estado" do mesmo dia.
"Ao contrário das chacinas normalmente registradas em São Paulo, desta vez o crime não aconteceu em favela ou bar de área pobre, durante a madrugada. Entre 17h e 18h de ontem, seis pessoas foram assassinadas numa loja de celulares na rua Clélia, 2.138, na Lapa."
"Apesar de lugar e horário "incomuns", a lei do silêncio é a mesma da periferia. Com medo, moradores da região dizem que não sabem de nada."
A reportagem da Folha padecia ainda de outros males. Confusa, caía em conflito quanto a detalhes da ação. Em um trecho, vizinhos tinham ouvido disparos. Adiante, ninguém tinha ouvido nada, possivelmente devido a um silenciador.
Como material de apoio, o jornal descongelou o quadro que tem pronto para essas ocasiões: "Chacinas no município de São Paulo", com evolução do números de casos, supostas motivações e índice de crimes esclarecidos.
Enquanto isso, o concorrente fez um pequeno mapa para indicar a localização da loja na rua Clélia e desta no conhecido e movimentado bairro da Lapa.
Mas nada como a comparação das aberturas para revelar que uma história pode ganhar chamada de capa, aparecer em alto de página e ainda assim ser destruída pelo jornal.
Faltou à Folha sensibilidade para perceber que a notícia não cabia na fórmula tradicionalmente usada para relatar chacinas, desgraça associada às pessoas pobres da periferia distante, não à vizinhança do leitor.
São notas secas, de narrativa truncada e quase sem personagens. Seu fim não é contar o que aconteceu, mas apenas fechar o saldo de mortos do ano e compará-lo ao do período anterior.
Com os assassinatos da Lapa, o jornal mostrou-se desligado pela segunda vez em poucos dias.
A primeira ocorreu na edição do sábado anterior, 3 de março. Na véspera, a cidade fora atingida por um temporal cujas consequências fugiram ao quadro de transtornos com que o paulistano se habituou a conviver.
Quem viu pela televisão não terá se esquecido das imagens da mulher idosa resgatada de um carro à deriva na avenida Pompéia inundada.
Instantes depois de se julgar a salvo em uma calçada, foi colhida pela enxurrada. Os bombeiros encontraram o corpo a 150 metros dali.
Na reportagem da Folha, os eventos foram reduzidos ao coquetel habitual de número de pontos de alagamento na cidade, extensão dos congestionamentos e volume de precipitação. Mais o cálculo reconfortante de que foram 31 as vítimas fatais da chuva no Estado desde dezembro, quantidade inferior às 43 do mesmo período em 1999-2000.
Da mulher levada pelas águas não havia nem o nome.
"Duas mulheres morrem em temporal em SP", informou o título da capa (a outra caiu em um córrego na Penha). No concorrente: "Idosa afoga-se em enxurrada na avenida Pompéia". Nem sempre a conta dos mortos é o melhor resumo dos fatos.
"Não sei como explicar a avenida Pompéia para quem não conhece São Paulo", escreveu Clóvis Rossi em sua coluna de domingo passado.
"Talvez pudesse descrevê-la apenas como uma via normal, que não está em área de risco, que não tem córrego nas imediações, habitada pela classe média ou por prédios comerciais a ela destinados."
Faltou à reportagem da Folha essa capacidade de se espantar. Sem ela, chuva é sempre chuva, e toda chacina é a mesma. A notícia chega morta ao leitor.
Já tratei neste espaço do noticiário sobre a doença de Mário Covas. Não vejo necessidade de voltar ao assunto de maneira alentada, mas cabe registrar que também esse caso não terminou bem para a Folha.
A última entrevista do governador, a primeira do presidente depois da morte de Covas, o primeiro artigo de Geraldo Alckmin como titular do cargo: tudo estava na concorrência.
Informação médica, descrições de velório e enterro, repercussão de primeira hora: em nada o jornal se destacou positivamente.
Nos episódios da chacina e da chuva, falhou-se diante do inesperado. Neste último, nem se pode alegar surpresa. O conjunto é mais do que suficiente para acender um sinal de alerta.


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