|
Próximo Texto | Índice
Piloto automático
RENATA LO PRETE
"Seis pessoas morreram assassinadas dentro de uma
loja de assistência técnica para
celulares em São Paulo, a maior
chacina do ano no Estado."
Quantas vezes você encontrou
na Folha um texto com abertura
semelhante a essa da edição de
quinta-feira? Se é leitor assíduo,
muitas, porque todas as reportagens do jornal sobre o assunto se
parecem.
O que não significa que as chacinas sejam todas iguais. Basta
conferir o início da matéria no
"Estado" do mesmo dia.
"Ao contrário das chacinas
normalmente registradas em
São Paulo, desta vez o crime não
aconteceu em favela ou bar de
área pobre, durante a madrugada. Entre 17h e 18h de ontem, seis
pessoas foram assassinadas numa loja de celulares na rua Clélia, 2.138, na Lapa."
"Apesar de lugar e horário "incomuns", a lei do silêncio é a
mesma da periferia. Com medo,
moradores da região dizem que
não sabem de nada."
A reportagem da Folha padecia ainda de outros males. Confusa, caía em conflito quanto a
detalhes da ação. Em um trecho,
vizinhos tinham ouvido disparos. Adiante, ninguém tinha ouvido nada, possivelmente devido
a um silenciador.
Como material de apoio, o jornal descongelou o quadro que
tem pronto para essas ocasiões:
"Chacinas no município de São
Paulo", com evolução do números de casos, supostas motivações
e índice de crimes esclarecidos.
Enquanto isso, o concorrente
fez um pequeno mapa para indicar a localização da loja na rua
Clélia e desta no conhecido e
movimentado bairro da Lapa.
Mas nada como a comparação
das aberturas para revelar que
uma história pode ganhar chamada de capa, aparecer em alto
de página e ainda assim ser destruída pelo jornal.
Faltou à Folha sensibilidade
para perceber que a notícia não
cabia na fórmula tradicionalmente usada para relatar chacinas, desgraça associada às pessoas pobres da periferia distante,
não à vizinhança do leitor.
São notas secas, de narrativa
truncada e quase sem personagens. Seu fim não é contar o que
aconteceu, mas apenas fechar o
saldo de mortos do ano e compará-lo ao do período anterior.
Com os assassinatos da Lapa, o
jornal mostrou-se desligado pela
segunda vez em poucos dias.
A primeira ocorreu na edição
do sábado anterior, 3 de março.
Na véspera, a cidade fora atingida por um temporal cujas consequências fugiram ao quadro de
transtornos com que o paulistano se habituou a conviver.
Quem viu pela televisão não
terá se esquecido das imagens da
mulher idosa resgatada de um
carro à deriva na avenida Pompéia inundada.
Instantes depois de se julgar a
salvo em uma calçada, foi colhida pela enxurrada. Os bombeiros encontraram o corpo a 150
metros dali.
Na reportagem da Folha, os
eventos foram reduzidos ao coquetel habitual de número de
pontos de alagamento na cidade, extensão dos congestionamentos e volume de precipitação. Mais o cálculo reconfortante de que foram 31 as vítimas fatais da chuva no Estado desde
dezembro, quantidade inferior
às 43 do mesmo período em
1999-2000.
Da mulher levada pelas águas
não havia nem o nome.
"Duas mulheres morrem em
temporal em SP", informou o título da capa (a outra caiu em
um córrego na Penha). No concorrente: "Idosa afoga-se em enxurrada na avenida Pompéia".
Nem sempre a conta dos mortos
é o melhor resumo dos fatos.
"Não sei como explicar a avenida Pompéia para quem não
conhece São Paulo", escreveu
Clóvis Rossi em sua coluna de
domingo passado.
"Talvez pudesse descrevê-la
apenas como uma via normal,
que não está em área de risco,
que não tem córrego nas imediações, habitada pela classe média
ou por prédios comerciais a ela
destinados."
Faltou à reportagem da Folha
essa capacidade de se espantar.
Sem ela, chuva é sempre chuva, e
toda chacina é a mesma. A notícia chega morta ao leitor.
Já tratei neste espaço do noticiário sobre a doença de Mário
Covas. Não vejo necessidade de
voltar ao assunto de maneira
alentada, mas cabe registrar que
também esse caso não terminou
bem para a Folha.
A última entrevista do governador, a primeira do presidente
depois da morte de Covas, o primeiro artigo de Geraldo Alckmin como titular do cargo: tudo
estava na concorrência.
Informação médica, descrições
de velório e enterro, repercussão
de primeira hora: em nada o jornal se destacou positivamente.
Nos episódios da chacina e da
chuva, falhou-se diante do inesperado. Neste último, nem se pode alegar surpresa. O conjunto é
mais do que suficiente para
acender um sinal de alerta.
Próximo Texto: Agora está escrito Índice
Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br. |
Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
|