São Paulo, domingo, 11 de junho de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Próximo Texto | Índice

OMBUDSMAN
Números torturados

RENATA LO PRETE Faz tempo que não escrevo sobre números. Vale a pena voltar a eles, porque exemplos de sua má utilização continuam a aparecer na Folha. Basta conferir a manchete de segunda-feira passada: "Áreas de SP superam a Colômbia em crimes".
As áreas são as mais violentas da capital, distritos como Jardim Ângela, Cidade Ademar e Jardim São Luís, na zona sul, e Sé, no centro. Nesses locais, a taxa de homicídios no ano passado foi de 100 ou mais casos por 100 mil habitantes, segundo o levantamento da Fundação Seade que serviu de base à reportagem.
A Colômbia, lembrou o texto da capa, é o país mais violento da América Latina. Mas não consegue ser pior do que as regiões de São Paulo "onde a barra pesa", como descreveu o caderno Cotidiano.
Com ações do narcotráfico, guerrilha e grupos paramilitares, além da chamada criminalidade comum, a taxa no país vizinho é de 78,44 assassinatos por 100 mil habitantes.
Até onde se sabe, os dados apresentados pelo jornal estão corretos. Mas nem só com números errados se produz informação distorcida.
A despeito de sua formulação dramática, o enunciado em questão não resiste a uma pergunta simples: e daí?
Não faz sentido cotejar a taxa de homicídios de um país com a de um bairro. São porções geográficas de amplitude muito diferente.
Vá lá que se registrasse o dado colombiano no meio da reportagem, a título de curiosidade. Mas não se pode extrair a manchete do jornal da comparação de laranjas com bananas.
Fiz comentário nesse sentido na crítica interna. Poucas horas depois de concluí-la, recebi de um leitor protesto semelhante.
"A violência é sempre concentrada em alguns bairros, em geral os mais periféricos, onde há menor presença do Estado", observou ele. "Logo, não é correto comparar uma área em que há epidemia com outra muito mais ampla, um país."
Ainda o leitor: "Se você pegar as regiões mais violentas da Colômbia, a taxa será muito maior que a do Jardim Ângela. Se quiser exagerar, a taxa dos Jardins é muito menor que a média dos EUA".
Partilho da conclusão dele sobre a manchete: "Não significa nada".
Além da comparação equivocada, há dois problemas com o material de segunda-feira, ambos relacionados ao uso de números no trabalho jornalístico.
Um deles me passou despercebido na primeira leitura. Cheguei a escrever na crítica que o relatório da Fundação Seade (Sistema Estadual de Análise de Dados) parecia bastante expressivo. Poderia ter segurado o título sozinho, sugeri, sem necessidade de apelar para a "saída colombiana".
Engano meu. Nos arquivos constatei que a reportagem estava defasada em relação a uma que a própria Folha havia publicado em abril, com dados do primeiro bimestre deste ano.
Mesmo o balanço de 99 já tinha saído, só que divulgado por outra fonte, o Pro-Aim (Programa de Aprimoramento das Informações sobre Mortalidade, da prefeitura paulistana).
Duas hipóteses:
a) o jornal não tem boa memória do que publica, o que limita sua capacidade de avaliar estatísticas;
b) o jornal tem boa memória do que publica, mas, na ausência de opção melhor, aceita fazer barulho com notícia velha.
O outro problema diz respeito ao Jardim Ângela, que continua a liderar o ranking do município. Sua taxa de assassinatos subiu 23% no ano passado.
A informação me fez lembrar de uma reportagem feita pela Folha em outubro ("Lazer barato reduz em 53% as mortes no miolo do Jardim Ângela").
Era um relato cheio de entusiasmo sobre a redução da criminalidade na porção central do bairro, fruto de medidas como a implantação de quadras esportivas e de um parque ecológico.
Fechados os dados de 99, a avaliação é diferente. Segundo entrevistados, a estratégia de concentrar as benfeitorias no centro "empurrou os bandidos para outros locais do mesmo distrito".
Isso não desmerece os esforços da comunidade para melhorar suas condições de vida. Também não elimina o interesse da história. Mas indica que o tom da reportagem de outubro foi desproporcional ao alcance limitado dos dados disponíveis àquela altura.
Alguém já disse que números, desde que bem torturados, revelam qualquer coisa.
A partir de amanhã, uma seleção de trechos da crítica interna será colocada diariamente no site www.uol.com.br/folha/ombudsman.
A crítica reúne observações da ombudsman sobre a edição do dia. É enviada aos jornalistas da Folha de segunda a sexta-feira. A partir do meio da tarde estará disponível no site.
O leitor, que tanto contribui com a coluna dominical, agora poderá opinar também sobre essa reflexão diária.


Próximo Texto: Prato pronto
Índice


Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.