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OMBUDSMAN
Números torturados
RENATA LO PRETE
Faz tempo que não escrevo
sobre números. Vale a pena
voltar a eles, porque exemplos de
sua má utilização continuam a
aparecer na Folha. Basta conferir a manchete de segunda-feira
passada: "Áreas de SP superam a
Colômbia em crimes".
As áreas são as mais violentas
da capital, distritos como Jardim
Ângela, Cidade Ademar e Jardim São Luís, na zona sul, e Sé,
no centro. Nesses locais, a taxa
de homicídios no ano passado
foi de 100 ou mais casos por 100
mil habitantes, segundo o levantamento da Fundação Seade que
serviu de base à reportagem.
A Colômbia, lembrou o texto
da capa, é o país mais violento
da América Latina. Mas não
consegue ser pior do que as regiões de São Paulo "onde a barra
pesa", como descreveu o caderno
Cotidiano.
Com ações do narcotráfico,
guerrilha e grupos paramilitares,
além da chamada criminalidade
comum, a taxa no país vizinho é
de 78,44 assassinatos por 100 mil
habitantes.
Até onde se sabe, os dados
apresentados pelo jornal estão
corretos. Mas nem só com números errados se produz informação distorcida.
A despeito de sua formulação
dramática, o enunciado em
questão não resiste a uma pergunta simples: e daí?
Não faz sentido cotejar a taxa
de homicídios de um país com a
de um bairro. São porções geográficas de amplitude muito diferente.
Vá lá que se registrasse o dado
colombiano no meio da reportagem, a título de curiosidade. Mas
não se pode extrair a manchete
do jornal da comparação de laranjas com bananas.
Fiz comentário nesse sentido
na crítica interna. Poucas horas
depois de concluí-la, recebi de
um leitor protesto semelhante.
"A violência é sempre concentrada em alguns bairros, em geral os mais periféricos, onde há
menor presença do Estado", observou ele. "Logo, não é correto
comparar uma área em que há
epidemia com outra muito mais
ampla, um país."
Ainda o leitor: "Se você pegar
as regiões mais violentas da Colômbia, a taxa será muito maior
que a do Jardim Ângela. Se quiser exagerar, a taxa dos Jardins é
muito menor que a média dos
EUA".
Partilho da conclusão dele sobre a manchete: "Não significa
nada".
Além da comparação equivocada, há dois problemas com o
material de segunda-feira, ambos relacionados ao uso de números no trabalho jornalístico.
Um deles me passou despercebido na primeira leitura. Cheguei a escrever na crítica que o
relatório da Fundação Seade
(Sistema Estadual de Análise de
Dados) parecia bastante expressivo. Poderia ter segurado o título sozinho, sugeri, sem necessidade de apelar para a "saída colombiana".
Engano meu. Nos arquivos
constatei que a reportagem estava defasada em relação a uma
que a própria Folha havia publicado em abril, com dados do primeiro bimestre deste ano.
Mesmo o balanço de 99 já tinha saído, só que divulgado por
outra fonte, o Pro-Aim (Programa de Aprimoramento das Informações sobre Mortalidade, da
prefeitura paulistana).
Duas hipóteses:
a) o jornal não tem boa memória do que publica, o que limita
sua capacidade de avaliar estatísticas;
b) o jornal tem boa memória
do que publica, mas, na ausência
de opção melhor, aceita fazer barulho com notícia velha.
O outro problema diz respeito
ao Jardim Ângela, que continua
a liderar o ranking do município. Sua taxa de assassinatos subiu 23% no ano passado.
A informação me fez lembrar
de uma reportagem feita pela
Folha em outubro ("Lazer barato reduz em 53% as mortes no
miolo do Jardim Ângela").
Era um relato cheio de entusiasmo sobre a redução da criminalidade na porção central do
bairro, fruto de medidas como a
implantação de quadras esportivas e de um parque ecológico.
Fechados os dados de 99, a avaliação é diferente. Segundo entrevistados, a estratégia de concentrar as benfeitorias no centro
"empurrou os bandidos para outros locais do mesmo distrito".
Isso não desmerece os esforços
da comunidade para melhorar
suas condições de vida. Também
não elimina o interesse da história. Mas indica que o tom da reportagem de outubro foi desproporcional ao alcance limitado
dos dados disponíveis àquela altura.
Alguém já disse que números,
desde que bem torturados, revelam qualquer coisa.
A partir de amanhã, uma seleção de trechos da crítica interna
será colocada diariamente no site www.uol.com.br/folha/ombudsman.
A crítica reúne observações da
ombudsman sobre a edição do
dia. É enviada aos jornalistas da
Folha de segunda a sexta-feira. A
partir do meio da tarde estará
disponível no site.
O leitor, que tanto contribui
com a coluna dominical, agora
poderá opinar também sobre essa reflexão diária.
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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
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