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OMBUDSMAN
Dúvidas no ar
BERNARDO AJZENBERG
Uma das diferenças entre jornalismo e literatura é que esta última pode se enriquecer com
o uso de frases difusas, ambíguas, elementos imprecisos que a
mente do leitor se encarrega de
fruir a seu modo, pessoal e intransferível. Por isso, mais do
que o autor, é o leitor quem "faz"
o livro de ficção.
O noticiário jornalístico requer
o contrário: o detalhe delineado,
exatidão, a reprodução a mais
fiel possível dos acontecimentos.
O máximo de informação concreta para um mínimo de afirmações generalizantes. Quando
patina na incompletude, ele se
empobrece, informa mal.
Dois assuntos, na semana, foram vítimas dessa abordagem
que, ao dizer tanto, acaba não
dizendo nada -ou, pior, deixa
no ar muitas interrogações.
Na edição de quarta-feira (13),
uma "Panorâmica" intitulada
"Alunos da USP apóiam greve
dos professores" informava que a
mobilização dos docentes daquela universidade obtivera o
"apoio formal dos alunos da graduação e da pós-graduação".
Acrescentava o que cada um
desses grupos pretendia fazer
(discussão de seus próprios problemas, panfletagens, manifestações etc) e concluía afirmando
que participariam de uma passeata na sexta-feira.
Aparentemente, nada demais.
Pergunto, no entanto, como fiz
em crítica interna: o que quer dizer "apoio formal"? Houve alguma assembléia estudantil? Foi
representativa? Quantos estudantes teriam participado dela?
A votação teria sido unânime?
De qual greve se está falando?
Qual a reivindicação dos docentes? Quantos deles estão parados? O que dizem as entidades?
O texto não contemplava essas
interrogações básicas.
Na sexta, nova reportagem sobre o assunto -"Professores da
USP de Ribeirão Preto aderem à
greve"- afirmava que essa adesão fora definida em assembléia
e que, em outra assembléia, os
docentes da USP tinham decidido manter a greve iniciada na
segunda. Tudo assim, sem detalhes. E acabava numa citação:
"Para o diretor da Adusp (associação dos docentes) Cesar Minto, o movimento cresceu". Ponto.
Sob outra forma, o mesmo problema de fundo -a fragilidade
das afirmações tão contundentes
quanto precárias por sua generalidade- surgiu no texto "Igrejas evangélicas auxiliam imigrantes ilegais", reportagem acoplada a outra, na capa de Cotidiano de sexta, sobre a prisão de
brasileiros que trabalhavam ilegalmente no Reino Unido.
Início do texto: "As igrejas
evangélicas brasileiras são o
principal ponto de apoio para os
brasileiros que moram no exterior. Desde que chegam aos Estados Unidos ou aos principais países da Europa ocidental, os brasileiros recebem todo tipo de apoio
dessas igrejas, inclusive para alimentação e moradia".
Mais adiante: "O apoio dos
evangélicos é dado apara qualquer pessoa, independentemente
da religião. Com isso, muitos se
convertem ao pentecostalismo
ao enfrentarem as primeiras dificuldades no exterior".
Na crítica interna, indaguei:
há alguma estatística, alguma
observação empírica consistente
capaz de dar base a tão amplas e
tão afirmativas generalizações?
Pode até ser tudo verdade, mas o
texto, pelo menos, não o demonstrava. Apenas dois exemplos
concretos eram mencionados:
Boston (EUA) e Zurique (Suíça).
Além da formulação genérica
ou da informação precária, esse
tipo de confecção de reportagens
embute um risco maior: o de
prestar-se -apesar da provável
intenção em sentido contrário-
como divulgador, tal qual um
press release "disfarçado", de
afirmações taxativas que interessam, sobretudo, a esse ou àquele
grupo envolvido em dada questão ou certo acontecimento.
Nada mais distante de um jornalismo que se queira imparcial,
preciso e informativo do que o
papel de simples mensageiro.
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