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OMBUDSMAN
Aspas e respeito
BERNARDO AJZENBERG
Todo bom repórter domina a
técnica de extrair de seus entrevistados frases contundentes,
expressivas, inusitadas.
Citações são a alma da boa reportagem. Ensejam uma ponte
entre o personagem e o leitor.
Humanizam o texto. Conferem-lhe autenticidade.
Como afirma o "Guide to
News Writing", espécie de manual da agência "Associated
Press", "qualquer que seja o seu
tamanho, uma matéria sem citações se torna tão árida como
uma paisagem lunar".
Além das declarações, o repórter confere vida aos relatos com
detalhes significativos, dados
precisos, que particularizem cenários, contextos. Quanto mais
êxito obtiver aí, mais completo e
atraente estará o texto.
Essas regras, básicas, se tornam ainda mais importantes em
textos produzidos em momentos
ou locais de tensão, de crise, em
situações desfavoráveis.
Deve estar ainda fresca na memória do leitor, por exemplo, a
reportagem "O último panelaço", da contracapa do caderno
"Colapso da Argentina", publicado pela Folha sexta-feira.
O enviado especial a Buenos
Aires conta, ali, como foi a noite
que se seguiu à decretação do estado de sítio. Além da contextualização política e histórica, a
reportagem continha detalhes
da movimentação da "massa"
revoltada e... citações.
Por exemplo: "Isto não é de direita nem de esquerda. É contra
os sem-vergonhas", disse um
"homem sem camisa" diante do
Congresso.
A mesma sensação de material
jornalístico, vivo, daqueles que
nos fazem enxergar no papel impresso o movimento de coisas e
pessoas, pôde o leitor experimentar em textos produzidos pelos
enviados da Folha ao Paquistão
e ao Afeganistão recentemente.
Material daqueles que nos fazem pensar: "Pôxa, esse jornal
vale a pena, olha o que ele, e só
ele, traz para mim".
Frustração
Semelhante sensação experimentei domingo passado ao ler a
reportagem "Medo e frustração
esvaziam Jerusalém", creditada
ao enviado especial do jornal a
Israel/Cisjordânia/Gaza.
Ali havia dados curiosos sobre
o dia-a-dia de um hospital, o Bikur Holim, situado na área onde
ocorreu a maior parte dos atentados terroristas na cidade.
Prosseguia, ainda, trazendo
um "Outro Lado": a comemoração dos últimos momentos do
período sagrado do Ramadã.
Gostei do texto: pauta original,
trazia citações de médicos,
transmitia o "clima" local.
Ao abrir a caixa de mensagens
de meu computador na Folha,
segunda-feira, deparei com uma
cujo autor se dizia "chocado"
diante do que havia constatado:
todas as citações dos médicos daquela reportagem correspondiam, literalmente, a trechos de
citações presentes numa reportagem do diário israelense
"Haaretz" da sexta anterior.
Fui conferir no site do jornal e
confirmei: todas as citações
eram copiadas. Seria um caso de
plágio? Como leitor, passei do
contentamento à frustração.
Em minha crítica interna de
segunda-feira, mencionei o problema: "É estranho. Da maneira
como está, entende-se que as declarações foram feitas à Folha.
Faltou, no mínimo, o crédito.
Não seria o caso de um Erramos?". Não recebi nenhuma resposta ou contestação.
Na sexta-feira, saiu um "Erramos": "A reportagem "Medo e..."
reproduziu entrevistas concedidas ao jornal israelense "Haaretz" sem ter dado o crédito".
É louvável a admissão do equívoco, pensei. Mas isso resolve o
assunto? Do ponto de vista formal e imediato, pode-se dizer
que sim. Mas é necessário tirar
lições dos erros cometidos, ruminá-los para que procedimentos,
por exemplo, desse tipo não voltem a ser aplicados.
Instada pelo ombudsman e pela Secretaria de Redação, a editoria de Mundo afirmou, depois,
que o enviado especial relatou
ter efetivamente estado na tal
clínica de Jerusalém e que "fez
entrevistas". Ele disse, ainda, ter
lido a matéria do "Haaretz" e
que "pode ter cometido o descuido de citar as entrevistas sem
mencionar o jornal". Nega, porém, que tenha havido uma
"omissão deliberada".
O que espera o leitor de um
"grande jornal", além de notícia,
serviço e informação correta?
Espera que ele não seja um "recorta-e-cola" (no caso, da internet), como ainda acontece, infelizmente, com vários "noticiários" de rádio, por exemplo. E espera transparência.
O "mundo da notícia" já está
pasteurizado demais, igual demais, monopolizado demais por
pouquíssimas agências internacionais.
O mínimo que se cobra de seus
repórteres que viajam a trabalho
é que fujam do roteiro oferecido
a todos, que produzam material
realmente próprio, original.
Se isso for, por algum motivo,
em determinada circunstância,
impossível, que se deixe claro para o leitor. Que se atribuam os
devidos créditos. Antes de mais
nada, é uma questão de respeito.
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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman,
ou pelo fax (011) 224-3895.
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