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OMBUDSMAN
O novo caso Herzog
MARCELO BERABA
Nunca vi nada parecido
com o que aconteceu ao
longo desta semana na imprensa
depois que o "Correio Braziliense" divulgou, no domingo, três
fotos de um homem nu que identificou como sendo o jornalista
Vladimir Herzog. As fotos teriam sido feitas no cárcere do
DOI-Codi de São Paulo, em
1975, pouco antes de Herzog ser
assassinado por pertencer ao
Partido Comunista Brasileiro.
A revelação do "Correio" provocou uma crise, que ainda pode
ter desdobramentos, entre o governo petista e o Exército; deu
dimensão nacional ao movimento que exige a abertura dos
arquivos da repressão; e deixou
os jornais brasileiros desatinados em relação à identidade do
homem nu que aparece nas fotos.
A certeza do domingo, de que o
retratado era Herzog, foi sendo
substituída, ao longo da semana, por questionamentos que
culminaram, quinta, com a informação de que se tratava de
um padre canadense, igualmente perseguido pelo regime militar.
Quem é o homem sentado, cabisbaixo e humilhado, que ocupou as páginas de quase todos os
jornais ao longo da semana?
A Folha estava segura, na sexta, depois de ter acesso ao arquivo "à disposição do presidente",
de que se trata do padre canadense. O "Correio" mantinha a
certeza, com base em identificação feita e confirmada pela viúva de Herzog, Clarice, e de um
laudo pericial, de que pelo menos uma das fotos é de Herzog.
"O Globo" e o "Estado" não pareciam tão seguros e preferiram
manter as duas possibilidades,
sem assumi-las.
Independentemente da identidade da foto, a imprensa brasileira cometeu vários deslizes ao
longo da semana, e é deles que
pretendo tratar. A própria desorientação, evidente nas edições
de sexta-feira, é conseqüência de
alguns erros.
A apuração
O primeiro problema está na
apuração da reportagem do
"Correio Braziliense". O jornal
tinha submetido as fotos a alguns antigos companheiros de
Herzog, mas nenhum deles foi
concludente. E dificilmente o seriam, dada a qualidade das fotos
e o tempo corrido, 29 anos.
O jornal decidiu publicar a reportagem "Herzog, humilhação
antes do assassinato" depois que
teve uma das fotos reconhecidas
pela viúva do jornalista, Clarice.
Ela recebeu as três cópias de baixa qualidade por e-mail. Na manhã de sábado, reconheceu uma
delas, não as três.
As dúvidas que surgiram, e
permanecem, indicam que o
mais prudente teria sido o encaminhamento das fotos para outros testes de identificação e para
uma perícia que as comparasse
com outras fotos e que levasse
em conta várias ponderações
que estavam sendo feitas quanto
às características do corpo e ao
ambiente. Como só o "Correio"
tinha as fotos, dispunha de tempo para tentar obter mais informações nos bastidores do governo e nas áreas militar e de inteligência.
Estes procedimentos teriam
evitado a discussão pública que
certamente constrange a família
e amigos de Herzog e, agora, um
padre e uma religiosa que não tinham nada a ver com a história.
A humilhação
Um segundo problema, surgido antes mesmo das dúvidas
quanto à identificação das fotos,
foi levantado por vários leitores:
os jornais tinham o direito de
publicar as fotos de um homem,
qualquer que seja, nu e desamparado? Vários leitores consideram "falta de respeito" e de ética.
Em entrevista publicada pelo
"Correio", Clarice Herzog declarou que se sentia incomodada e
desconfortável com o ressurgimento do caso. Escrevi para ela
perguntando se considerava que
os jornais não deveriam ter publicado as fotos.
Sua resposta: "Acho que os jornais fizeram bem de ter publicado as fotos. A notícia tem que ser
dada, por mais doída que seja. A
questão é encontrar o tom certo.
O que me agrediu, além das fotos
em si, foi a forma como foram
publicadas. Alguns jornais, não
preciso citar nomes, deram um
caráter sensacionalista ao assunto, expondo duplamente o
Vlado com fotos imensas, na primeira página, com o intuito de
realmente chocar o leitor, como
se as fotos por si mesmas não fossem suficientemente terríveis".
Segundo o diretor de Redação
do "Correio", Josemar Gimenez,
Clarice pediu a vários amigos comuns que o jornal evitasse publicar fotos que mostrassem Herzog
sendo torturado. Havia a informação de que o "Correio" tinha
mais fotos além das que publicou. "Disse que não tínhamos
mais fotos e, se tivéssemos, não
publicaríamos. Não daria fotos
muito chocantes, mas mostrar a
foto do Herzog preso e humilhado nos porões da ditadura, reconhecido pela Clarice, é importante e inédito, o que dá a grandeza da informação. E acho
muito importante poder contar a
história política do país".
Para Suzana Singer, secretária
de Redação da Folha, "são fotos
de valor histórico, sem nenhuma
conotação sexual. Esconder parte da foto ou colocar tarja seria
praticar a antinotícia".
Estou de acordo com a avaliação dos três. Comprovado que as
fotos são de Vladimir Herzog e
que foram tiradas pouco tempo
antes de ser morto, elas têm um
valor histórico e documental que
justifica sua publicação.
As chantagens
É diferente, na minha opinião,
da forma como o padre canadense foi tratado por vários jornais na sexta-feira. Por considerar que as fotografias tinham sido obtidas de forma ilegal pelo
SNI (antigo Serviço Nacional de
Informações), a nota do governo
que informou que as fotos não
eram de Herzog não revelou o
nome do novo personagem: "Por
violar a vida privada dos fotografados, estou impedido moral
e legalmente de revelar os nomes
das pessoas na fotografia", assinou o ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos).
O ministro estava certo. O padre havia sido vítima de investigações ilegais, de armações e de
chantagens para desmoralizá-lo
por ser da ala progressista da
igreja. Bastava os jornais informarem que ele tinha sido alvo de
espionagem do SNI.
Nada legitima o relato minucioso -sem interesse político ou
histórico- das difamações contra o padre e uma religiosa, feito
pela Folha na sexta-feira com
base nas fichas pessoais dos dois,
montadas para chantegeá-los.
Ao fazê-lo, a Folha os expôs a novos constrangimentos.
O caso todo, como vimos, é
complicado. Estamos tratando,
ao mesmo tempo, com questões
de Estado e com a vida e a morte
de pessoas que foram ultrajadas.
A cobertura exige dos jornais
prudência, sensibilidade e rigor
jornalístico.
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