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OMBUDSMAN
Viagens perigosas
BERNARDO AJZENBERG
Como um raio em céu azul,
caiu no jornal domingo passado reportagem sobre o projeto
Calha Norte. Para quem não se
lembra, é um programa criado
em 1985 para povoar as fronteiras do Brasil na Amazônia. Título do texto: "Quintão quer elevar
verba do Calha Norte".
A abertura diz: "O ministro da
Defesa, Geraldo Quintão, fará
nesta semana uma visita a nove
unidades militares na Amazônia. O objetivo é coletar informações para propor um aumento do orçamento do Projeto...".
De imediato senti que havia
algo estranho. O assunto, corretamente ou não, estava fora da
mídia havia tempo; a Folha não
tem por hábito fornecer tanto
detalhe quanto se lia nesse texto
sobre viagens a serem feitas por
ministros. Mais: o título e o sobretítulo -"Objetivo do projeto
é a ocupação de uma das regiões
menos habitadas do país, com
apenas 1,2% da população"-
resvalavam em tom oficioso.
O mal-estar cresceu na quarta,
quando nova reportagem, no
mesmo diapasão, foi publicada.
Título: "Defesa da fronteira recebe menos verba que em 2000".
Com poucas alterações -mais
precisão em dados de investimentos e de verbas-, o texto era
quase reprodução do primeiro.
A informação que lhe deu o título, sintomaticamente, já constava da reportagem do domingo.
Ao pé, uma explicação: "O jornalista Fernando Rodrigues viajou ao Amazonas e a Roraima a
convite do Ministério da Defesa.
Nos trechos em que havia vôos
comerciais disponíveis, a Folha
arcou com as despesas".
Ou seja: o primeiro texto, na
prática, tivera como função
"vender" a viagem do ministro
para a qual a Folha havia sido
convidada.
Outra matéria foi publicada
quinta-feira, dando conta de declarações de Quintão contrárias
à demarcação contínua de terras
indígenas. Ele também negava
haver abuso sexual de índias por
parte de militares em Roraima.
À diferença dos iniciais, esse texto se cobriu de outros, com posições contrárias às do ministro.
Pauta terceirizada
O repórter Fernando Rodrigues, um dos mais experientes
da Folha, considera "praxe do
jornal" fazer a apresentação de
eventos -no caso, a viagem do
ministro. "Na cobertura de uma
viagem", acrescenta, "é normal
mandar o máximo de matérias,
até para não tomar furo do concorrente (no caso, o "Estado de
S.Paulo", também convidado)".
Sem dúvida, a Folha está certa
e é transparente ao dizer que o
jornalista viajou a convite (o que
o concorrente, diga-se, não fez).
Mas a questão é outra: não fosse
a viagem a convite do ministro,
daria o jornal tamanho espaço
ao assunto?
É ao leitor que interessa tanto
o tema Calha Norte, a ponto de
este merecer três reportagens
grandes em cinco dias, ou elas só
existiram porque o Ministério
da Defesa tomou a iniciativa?
Como escrevi na crítica interna na quarta-feira, "o registro de
que o repórter viajou a convite
do governo, embora importante,
não compensa... a aparência de
uso do jornal por uma espécie de
lobby do ministro da Defesa...
em sua batalha por mais verba".
Com tais coberturas em cascata,
propiciadas por viagens a convite, o que se faz é abrir a possibilidade de que a pauta do jornal
seja determinada por agentes
outros que não o interesse público ou o do leitor.
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de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
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