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São Paulo, domingo, 28 de setembro de 2003

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OMBUDSMAN

A fraude além dos fatos

Encerrado o inquérito policial, na quinta-feira, a farsa da "entrevista" com "membros" do PCC no "Domingo Legal" de 7/9 consolidou-se como fruto podre de um ambiente selvagem onde a disputa por audiência (leia-se faturamento) parece tudo justificar em termos éticos, onde restos de jornalismo se misturam com entretenimento e, pior, submetem-se a ele, deixam-se sufocar por suas regras próprias, nas quais inexiste diferença entre realidade e ficção.
Qual é a função social da TV? Como foi possível chegar a tamanha desfaçatez? Até onde vai a reponsabilidade do apresentador (Gugu)? E a da emissora (SBT)? Qual é o limite entre notícia e diversão?
Cabe ou não cabe aplaudir a suspensão da edição do programa do dia 21, decidida como forma de punição em liminar judicial? O que tende a surgir agora?
As interrogações suscitadas pelo caso são várias, e a maioria só terá solução mais tarde, na continuidade do debate público, no desenrolar do imbróglio em corredores da polícia, do Judiciário, da Esplanada (Comunicações e Justiça) e do SBT.
Como ombudsman, porém, procuro responder, aqui, a uma outra pergunta: considerando o papel do jornal na cobertura de um evento tão grave, complexo e polêmico, o leitor da Folha tem sido bem servido, não só para saber o que se passa, mas para entendê-lo e, a partir daí, formar uma opinião?
Relendo o que foi publicado desde 10/9, a resposta, na minha avaliação, é sim... e não.

Na superfície
A Folha acompanhou de perto os fatos (denúncias da fraude por parte de concorrentes da TV, iniciativas do Ministério Público e da polícia, as movimentações públicas do apresentador e do SBT, de seus subordinados encarregados da "matéria", dos "atores" Alfa e Beta, a decisão judicial de suspender o programa do dia 21, os prejuízos pecuniários do SBT e de Gugu, o dia-a-dia do inquérito policial).
Colunistas de diferentes cadernos "entraram" no tema, a maior parte abordando o "caldo de cultura" social e cultural da farsa e, num segundo momento, a decisão polêmica da Justiça (censura prévia ou sanção econômica exemplar?).
Não vi, também, desprezo pelo "outro lado" (o fato é que o SBT e Gugu impuseram a si próprios e aos demais a lei do silêncio).
Ao menos até a edição de sexta-feira, porém, a Folha deixou a desejar em alguns pontos essenciais que ajudam a constituir a particularidade do jornalismo impresso: a faculdade de propiciar, estimular e ampliar a reflexão do leitor, para além das reações emocionais imediatas.
A Constituição tem artigos específicos sobre comunicação (liberdade de expressão, responsabilidade social). O Código Brasileiro de Telecomunicações prevê punições (multa, suspensão, cassação) às instituições e sujeitos que o desrespeitem. Existem a Lei de Imprensa, o Código Penal.
Você, leitor, consegue explicar, a partir do que se publicou, como tais textos se relacionam com o caso Gugu-PCC?
Do quê, afinal, são acusados, formalmente, os que promoveram a fraude? E a emissora? Quais as punições cabíveis? Como se estrutura a hierarquia no SBT e no "Domingo Legal" para esse efeito?
Em quais artigos se baseou a Justiça para suspender, com liminar, o programa do dia 21 (é a primeira vez que uma decisão desse tipo é tomada desde 1988)? O que dizem esses preceitos?
Como é o esquema de vigilância do Ministério da Justiça sobre os programas de TV? Ele tem funcionado na prática?
Em que pé se encontra a discussão sobre a implementação de um código de ética ou de uma auto-regulamentação (hoje inexistentes) para as emissoras de TV? O que prevêem as leis de outros países sobre o assunto?

Viés e munição
Nesse terreno -o da contextualização, aprofundamento, fundamentação e solidez do noticiário-, a Folha não foi bem.
Não só pela falta de precisão, de informação ampliada e de didatismo, mas também por apresentar, nas declarações e opiniões publicadas no noticiário, certo viés contrário à decisão que suspendeu o programa -mesma posição assumida, aliás, pelo jornal em editorial de 23/9, defendendo punição, sim, mas após julgamento, conforme a lei, e caracterizando a suspensão como censura prévia, inconstitucional.
É a minha visão pessoal, até, mas há muita gente (indivíduos e instituições) competente, democrática e de boa-fé que pensa diferente (a suspensão teria sido uma sanção, não censura) e que não foi devidamente contemplada nas reportagens (com entrevistas, por exemplo).
O único artigo técnico (em termos jurídicos), o do colunista Walter Ceneviva, em 21/9, antecipava a linha do editorial. Na edição seguinte, ao reunir declarações de outros especialistas, a reportagem o fez de modo breve, superficial, amontoando frases pouco consistentes num pequeno texto chamado "Especialistas divergem sobre decisão do TRF".
Registre-se a seção "Tendências/Debates" de ontem, com artigos contra e a favor da liminar.
O jornal acertará mais, creio, se rearranjar seu enfoque noticioso, municiando melhor os leitores -além dos fatos do dia-a-dia- para que eles, como cidadãos, possam atuar de modo consistente numa discussão difícil que apenas começou.


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Bernardo Ajzenberg é o ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Bernardo Ajzenberg/ombudsman, ou pelo fax (011) 224-3895.
Endereço eletrônico: ombudsman@uol.com.br.
Contatos telefônicos: ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira.

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