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OMBUDSMAN
O povo da rua
MARCELO BERABA
É fato que estamos acostumados a toda sorte de violência nas nossas grandes cidades,
principalmente em São Paulo e
no Rio. Mas o que aconteceu, dez
dias atrás, nas proximidades da
praça da Sé, o marco zero da
maior cidade brasileira e espaço
histórico de grandes manifestações cívicas e religiosas, deveria
nos chocar.
No intervalo de três dias, 15 moradores de rua foram atacados de
madrugada enquanto dormiam.
Na primeira investida, na noite
de quarta (18) para quinta-feira,
três pessoas foram assassinadas e
sete gravemente feridas. No dia
seguinte, um dos feridos morreu.
No segundo ataque, na madrugada de sábado (21) para domingo,
outros cinco infelizes foram agredidos. Uma mulher morreu.
Seis mortos, nove feridos, sendo
que cinco ainda correm risco e podem morrer -esse foi o saldo da
maior chacina de excluídos já
perpetrada no coração da cidade
mais rica do Brasil.
Até o fechamento desta coluna,
a polícia não tinha pistas dos assassinos e a cidade não sabia o
que tinha acontecido. Havia hipóteses, especulações, mas a violência silenciosa que marcou
aquelas duas madrugadas ainda
está por ser decifrada. Quem matou? E por quê?
O que faz dessas chacinas um
caso maior? O número de mortos
e feridos, a forma cruel e covarde
como as pessoas foram atacadas e
assassinadas, o fato de terem sido
abatidas no centro de São Paulo,
a exposição pública de um problema que teimamos em não encarar, que é o das populações de
rua, o ambiente acirrado de disputa pela prefeitura, a intolerância, que parece estar por trás dos
ataques em série -tudo isso fez
com que os crimes da Sé deixassem de ser um caso local e policial
para se transformar em caso de
repercussão e de interesse nacional.
Nas páginas dos jornais
Folha e o "Estado" não perceberam imediatamente a dimensão
dos crimes, não entenderam que
não se tratava apenas de atos de
barbárie, mas que escancaravam
as contradições da cidade. O que
explica que tenha 10 mil pessoas
morando nas ruas? E o que explica que uma pessoa, ou várias, se
disponha a matá-las pelas madrugadas? O que acontece com essa megalópole?
Nenhum dos dois grandes jornais considerou que o caso merecesse manchete. O "Estado" de
sexta, dia 20, anunciou que "Estados atacam novo teto de inativo". E registrou a chacina no
meio da capa: "Mendigos mortos
a pauladas em São Paulo".
A Folha foi ainda mais fria. O
alto de sua primeira página tinha
uma grande arte colorida com
três mapas ilustrando a manchete
"Área pobre de SP concentra mais
jovens", resultado de uma pesquisa sobre indicadores sociais da cidade. A foto era de uma ginasta
em Atenas. E o título da matança
saiu espremido: "10 moradores de
rua são atacados a pauladas em
São Paulo; 3 morrem". Apenas
um registro.
Comentei, na crítica interna
que faço diariamente: "Sem foto,
sem uma arte que mostrasse o local dos crimes, sem um recurso
gráfico que valorizasse a notícia,
ela foi dada na primeira página
sem a indignação que o jornal
costuma se permitir em casos de
afrontas à cidadania".
E esse foi, na minha opinião, o
grande erro do jornal ao longo de
quase toda a cobertura: faltou à
Redação sensibilidade para perceber a dimensão dos fatos.
No domingo, dia 22, o jornal
não tinha preparado nada de especial sobre o assunto. Na segunda, o caso foi manchete pela primeira vez: "Moradora de rua
morre em novo ataque". Na terça,
foi despejado e perdeu espaço para assuntos sem o mesmo impacto
e importância. Na quarta, voltou
a ser manchete ("Morador de rua
diz que foi atacado por bando"),
mas na quinta e sexta acabou reduzido aos registros de rotina.
E os leitores?
Não foi só na edição que faltou
sensibilidade para destacar a relevância do drama da cidade. O
"Painel do Leitor", que deveria
ser um espaço de manifestação,
publicou, até sexta-feira, apenas
seis mensagens. E não foi por falta
de motivação dos nossos leitores,
porque o "Painel" havia recebido,
até anteontem, 31 correspondências. No mesmo período, "O Globo", que é um jornal do Rio, publicou 15 mensagens dos seus leitores comentando, debatendo,
propondo soluções.
A cobertura da Folha teve uma
outra falha: não soube aproveitar
o momento para abrir uma discussão sobre a população de rua.
O que os cidadãos dessa cidade
pensam sobre esse problema. Por
que 10 mil pessoas são obrigadas
a viver nas ruas? O que fazer com
elas? Como evitar que esse número aumente?
Exceções nesse quadro de equívocos foram os três editoriais publicados ao longo da semana,
"Barbárie em São Paulo" (sábado), "Selvageria" (terça) e "Grave
suspeita" (quarta). Demonstrou
uma atenção maior para os problemas de São Paulo do que a Redação.
Encaminhei várias perguntas
para a Direção sobre a cobertura.
Queria saber por que o jornal foi
tão irregular nesse caso. A Redação preferiu não comentar.
O jornal perdeu, nesta semana,
uma boa oportunidade para praticar um jornalismo que vá além
dos fatos, dos crimes e das aspas.
Ainda tem tempo para fazê-lo.
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Marcelo Beraba é o ombudsman da Folha desde 5 de abril de 2004. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Não pode ser demitido durante o exercício da função e tem estabilidade por seis meses após deixá-la. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva dos leitores, recebendo e verificando suas reclamações, e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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