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OMBUDSMAN
A ordem das coisas
RENATA LO PRETE
Na quarta-feira, os jornais noticiaram a morte de dois
sem-terra. Um dos casos ocorreu
no interior do Ceará, onde pistoleiros atacaram um grupo de
acampados. O outro, em Recife,
durante confronto entre manifestantes e policiais militares. Os
dois se deram no primeiro dia do
Levante do Campo, protesto organizado pelo MST em 19 Estados.
Na quinta-feira, o segundo caso voltou à capa da Folha com o
seguinte título: "Família de sem-
terra assassinado culpa MST".
Na mesma linha, o enunciado
interno dizia que os parentes
acusam o movimento de ter
"manipulado" José Marlúcio da
Silva.
A afirmação se baseou em frase ("Fizeram a cabeça dele") de
uma irmã do lavrador, que ingressou no MST apenas quatro
dias antes de morrer. Apoiou-se
também no veto da família a que
o velório fosse realizado no
acampamento dos sem-terra.
Três parágrafos adiante da declaração da irmã, a mulher de
Silva contava história diferente.
"Ali (entre os militantes) não era
o ambiente dele", dizia. Negava,
no entanto, que o marido tivesse
aderido ao movimento sob coação. Em seu entender, Silva foi
para o acampamento por achar
"que não poderia perder a oportunidade, porque diziam que a
terra era certa".
A versão da mulher não apareceu na primeira página. Tampouco foi destacada no sobretítulo (aquela linha de texto que
complementa as manchetes) interno.
Dos principais diários, apenas
a Folha considerou a teoria da
manipulação assunto de capa.
"O Globo" abriu seu relato da
mesma maneira, mas deixou-o
no miolo do jornal.
"O Estado" relatou a controvérsia familiar em sua reportagem, mas depois de informar em
que pé estavam as investigações
sobre a autoria do disparo (como de hábito nesses episódios,
estavam no estágio em que a PM
sustenta não ter atirado em ninguém).
Não se trata de descartar o
protesto dos parentes, sem dúvida merecedor de registro. Os problemas são dois: o lugar que foi
dado a essa questão na hierarquia da notícia e o desprezo pelo
elemento contraditório.
Como observou um dos leitores
que me procuraram para criticar
a conduta da Folha, discutir os
métodos de recrutamento do
MST não é mais importante,
neste caso, do que estabelecer
quem matou o sem-terra.
Além de inverter a ordem das
coisas, o jornal deixou escondida
a versão que esfriava seu título.
Por algum motivo, decidiu-se
que a palavra da irmã vale mais
que a da mulher do morto.
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de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
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