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GUSTAVO FRANCO
Outro lote de ilusões perdidas
O DELICADO equilíbrio político-planetário desse governo parece se organizar em
torno de uma realidade avassaladora, uma espécie de "big bang" a
partir do qual se percebeu que não
existe uma política econômica "de
esquerda" ou "alternativa".
Todavia, em razão desta rendição no terreno da economia, cuja
gestão foi entregue ao "cânone
neoliberal", ou às boas práticas internacionais, duas providências se
seguiram: a primeira foi exilar,
com honras, os depositários de
"idéias alternativas" em planetas
afastados, ministérios que se dedicam a coisas inofensivas, como o
futuro muito distante, quando todos estaremos mortos, e institutos
de pesquisa, agora dedicados a reflexões muito mais profundas e relevantes que a inflação e as agruras
da macroeconomia.
A segunda foi concentrar na política externa a esperança de se conseguir validar os ideais petistas históricos, ou se confirmar a existência de "sistema Norte-Sul", ou
"centro-periferia", que caberia ao
Brasil subverter, sabe-se lá para
que direção.
Em vista desta delicada e bem
urdida acomodação de sonhos a
realidades cruéis, a semana que
passou, na qual as manchetes se dividiram entre o fracasso de Doha e
o crescente pavor com a aceleração
da inflação, pode se tornar um divisor de águas.
Sobre a volta da inflação, vale repisar que a aceleração é pequena
demais para justificar esse medo
todo, sendo este o enigma a desvendar: por que esse tantinho de
inflação produz tanta apreensão. E
a resposta é simples: o medo deve
ser visto como proporcional ao
gosto que o brasileiro desenvolveu
pela estabilidade. Enxergamos a
velha senhora como um ex-alcoólatra observa um bombom com recheio de licor: uma dose minúscula
do diabólico néctar pode desmanchar uma abstinência duramente
conquistada. Por isso, o Banco
Central está mais forte do que nunca.
O fracasso de Doha já foi longamente esmiuçado pelos especialistas. Vale acrescentar como ilustração que nossa diplomacia parecia
refletir, de forma educada e profissional, uma postura governamental de aversão à globalização e, no
limite, ao estrangeirismo, cuja expressão mais chula, mas não menos sintomática, se achava em um
cartaz que andava pelas ruas. "Halloween é o cacete", dizia o cartaz,
assinado por algum movimento
nacionalista punk.
Pois é. Faltou observar que "cacete" vem do francês "casse tête",
como cassetete, passando por processos lingüísticos adaptadores conhecidos como haplologia e hiperbibasmo.
O ataque ao estrangeirismo é tão
tolo quanto a ilusão de que existe
"luta de classes" internacional.
gh.franco@uol.com.br
GUSTAVO FRANCO escreve aos sábados
nesta coluna.
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