São Paulo, domingo, 03 de novembro de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES A mudança a caminho MARILENA CHAUI
Em política há ações e acontecimentos com força para se tornarem
simbólicos. É assim que podemos contrapor dois momentos simbólicos que
marcam a política brasileira entre 1990 e
2002: o primeiro nos leva de volta ao
"Bolo de Noiva", que inaugurou a era
Collor; o segundo, à pergunta singela do
presidente eleito da República aos âncoras do "Jornal Nacional", da Rede Globo, na noite de 28 de outubro de 2002.
Por sua vez, a ideologia neoliberal afirma que o espaço público deve ser encolhido ao mínimo, enquanto o espaço privado dos interesses de mercado deve ser alargado, pois considera o mercado portador de racionalidade para o funcionamento da sociedade. Ela se consolidou no Brasil com o discurso da modernização, no qual modernidade significava apenas três coisas: enxugar o Estado (com as privatizações e a redução dos gastos públicos com os direitos sociais), importar tecnologias de ponta e gerir os interesses da finança nacional e internacional. Essa ideologia propagou-se pela vida cotidiana brasileira, bastando observar o que aconteceu nos noticiários. As cotações das Bolsas de Valores do mundo inteiro -assim como as das moedas-, o comportamento do FMI e dos bancos privados passaram para as primeiras páginas dos jornais, para o momento nobre dos noticiários de rádio e televisão, alguns canais chegando a manter na tela faixas com as cotações das Bolsas e das moedas minuto por minuto. A subida ou descida do valor do dólar, do euro e do real, o "risco Brasil", as falas dos dirigentes do FMI, do Banco Central norte-americano, dos economistas ingleses, franceses e alemães passaram a ocupar o lugar de honra e, nos noticiários matinais, assumiram a aparência de uma espécie de oração ou de missa, equivalentes ao que se passa nas rádios e canais de televisão religiosos. Na verdade, porém, o neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado e o enxugamento do Estado, mas é a decisão de cortar o fundo público no pólo de financiamento dos bens e serviços públicos (isto é, dos direitos sociais) e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, fazendo o Estado assegurar-lhe recursos em detrimento dos direitos sociais. Assim sendo, torna-se claro (como tão bem compreenderam os eleitores) que a prática democrática está demarcada como luta por uma nova gestão do fundo público, na qual a bússola é a defesa dos direitos sociais. Eis por que o presidente eleito começou a convocar corações e mentes de toda a sociedade para um pacto de luta contra as desigualdades e exclusões sociais, em nome da justiça e da dignidade humana. Poder-se-ia conjeturar que há nessa convocação risco de populismo. Não há. E por um motivo muito simples: o populista (via de regra pertencente à classe dominante) pretende tutelar o povo, que não é percebido como cidadão e ao qual são feitos favores. Lula foi formado numa política sindical nova, na qual não há lugar para a relação de tutela e de favor, mas de verdadeira representação entre os iguais. Precisamente essa igualdade impede um outro risco, qual seja, o messianismo, pois o líder messiânico é visto pelos liderados como um escolhido divino que não está no mesmo nível que eles, porque participa dos desígnios da divindade, realizando uma missão definida pelo "Alto" como batalha final entre o bem e o mal. A formação e a história políticas do presidente eleito, pautadas pelo valor conferido à cidadania, vão na direção exatamente contrária à das tradições populista e messiânica. Hoje, portanto, a mudança não está apenas no fato historicamente gigantesco de um operário de esquerda ter sido democraticamente eleito, com uma maioria esmagadora e sem precedentes, para a Presidência da República do Brasil, na primeira e verdadeira alternância de poder em nosso país; mas também na afirmação de uma outra perspectiva política, simbolicamente anunciada no pronunciamento do novo presidente e na mensagem contida em sua pergunta aos âncoras da Rede Globo. Marilena Chaui, 61, professora de filosofia política e história da filosofia moderna da USP, é autora, entre outras obras, de "A Nervura do Real" (Companhia das Letras). Texto Anterior: Frases Próximo Texto: Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak: Vacinas imbatíveis Índice |
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