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São Paulo, domingo, 04 de maio de 2003

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As cartas do Supremo

EDUARDO GRAEFF


As indicações que o presidente da República fará para o STF podem ser trunfos decisivos para o avanço das reformas

Nossa Constituição superdetalhista tem comandos muito específicos, sobre quase tudo, que muitas vezes apontam em direções contraditórias. Isso dá margem a interpretações muito controvertidas do texto constitucional.
Uma imensa contradição permeia a Constituição, entre a declaração generosa de direitos sociais e a garantia de vantagens desproporcionais a determinadas categorias do Estado, que acabam absorvendo recursos necessários à satisfação efetiva dos direitos sociais como "direitos de todos". As reformas constitucionais até agora atenuaram, mas não resolveram, essa contradição. Ela é aguda especialmente no terreno da Previdência Social, campo de batalha de uma reforma inacabada que o governo Lula promete retomar. A controvérsia sobre a cobrança de contribuição dos inativos do setor público envolve a interpretação de disposições constitucionais mais ou menos contraditórias.
A Constituição trata da Previdência Social no capítulo da seguridade social (artigos 194 a 204), que delineia o Regime Geral de Previdência junto com o Sistema Único de Saúde e a assistência social aos carentes; e, separadamente, no capítulo da administração pública, em que o artigo 40 especifica regras previdenciárias mais vantajosas para os funcionários públicos.
O princípio maior implícito no capítulo da seguridade é o da solidariedade de todos com os mais vulneráveis na sociedade -idosos, mães, crianças e adolescentes carentes, doentes, incapacitados para o trabalho.
A instituição da Previdência baseia-se numa solidariedade mais restrita, de trabalhadores de uma categoria entre si e com seus aposentados.
As duas espécies distintas de solidariedade implicam distintas relações entre contribuição e benefício.
Pelo princípio de solidariedade geral da seguridade social, eu contribuo para o benefício de outros sem contrapartida obrigatória para mim mesmo. O atendimento do SUS, os benefícios da assistência social e a aposentadoria por idade no Regime Geral de Previdência não dependem de contribuição prévia. Eles são financiados tanto por contribuições sociais como pelos impostos em geral. Não é a contribuição, mas o estado de necessidade, que gera direito a esses benefícios.
Pelo princípio de solidariedade mais restrita da Previdência, eu contribuo para mim mesmo na razão dos benefícios de aposentadoria e pensão que terei no futuro. Isso é o que está implícito na Constituição quando ela fala em "regime de caráter contributivo (...) [com" critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial", tanto no regime geral (artigo 201) como no regime especial dos funcionários públicos (artigo 40, caput).
A lei nš 9.783, de 1999, baseou-se no caráter contributivo do regime de Previdência dos funcionários para instituir a contribuição dos inativos. Uma decisão liminar do STF em ação de inconstitucionalidade da OAB entendeu, ao contrário, que "regime contributivo é, por essência, um regime de caráter eminentemente retributivo", como explicado acima. Não caberia ao inativo contribuir para a aposentadoria ou pensão de que ele já desfruta.
O caráter contributivo do regime de Previdência dos funcionários, previsto pela emenda constitucional nš 20, de 1998, ainda está longe de ser uma realidade. A maioria dos funcionários hoje aposentados contribuiu muito pouco para a Previdência. Os 11% sobre a remuneração total que os funcionários em atividade passaram a pagar recentemente cobrem só uma fração do custo dos benefícios atuais. Em nome do "caráter eminentemente retributivo", suspendeu-se uma contribuição que reduziria o imenso déficit que continua a ser financiado, sem retribuição nenhuma, pelos contribuintes em geral.
A decisão do STF também invocou o artigo 195, inciso II, na parte que isenta de contribuição social as aposentadorias e pensões concedidas pelo Regime Geral de Previdência. Por analogia, os inativos do setor público também estariam isentos. Na verdade, essa isenção é uma ressalva num dispositivo que prevê expressamente a cobrança de contribuição "do trabalhador e dos demais segurados da Previdência Social". Se "demais segurados" não são trabalhadores nem aposentados e pensionistas do regime geral, nem tampouco, pela interpretação adotada, inativos do setor público, quem seriam eles afinal?
A invocação do artigo 195 poderia dar outro rumo a essa discussão, em todo o caso. Foi aí, nas disposições gerais do capítulo da seguridade social, que a Constituição instituiu as contribuições sociais, para o custeio da seguridade em geral. Se há contribuições vinculadas especificamente ao custeio da Previdência, é por lei ordinária, não pela Constituição.
Seria provavelmente mais fácil achar base constitucional para a cobrança de contribuição dos inativos do setor público nesse contexto, sob o princípio de solidariedade geral da seguridade, e não da solidariedade restrita, retributiva, da Previdência. Algo para o governo e as forças políticas empenhadas na reforma considerarem antes de se engajarem em mais uma batalha morro acima por uma emenda constitucional nessa matéria. Venha a nova rodada de reformas por emenda constitucional, por lei ordinária ou ambas, os interessados na manutenção do status quo não deixarão de recorrer às ambiguidades da Constituição e às gestões em causa própria da corporação jurídica, somando advogados, promotores e juízes.
Por isso, as indicações que o presidente da República fará para o STF podem ser trunfos decisivos para o avanço das reformas. Ou podem ser cartas perdidas, se acabarem contemplando figuras mais propensas a ler as disposições constitucionais contraditórias pela lente de interesses corporativos.


Eduardo Graeff, 53, sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República (governo Fernando Henrique).


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