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A REDAÇÃO DO PODER
Na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) de 2004, pela primeira vez na
história recente, o governo orientou
o conteúdo político de uma atividade
escolar. O Ministério da Educação
nega, mas a evidência é contundente.
No momento em que o governo
patrocina o polêmico projeto do
Conselho Federal de Jornalismo
(CFJ) e Lula e seus ministros denunciam o "denuncismo", os jovens estudantes foram solicitados a dissertar sobre o tema "Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?". O
suporte para a redação era constituído por uma charge, na qual a TV
transfigura-se em lata de lixo, um extrato de texto sobre os programas
sensacionalistas, dois extratos favoráveis à auto-regulamentação da mídia e os incisos do artigo 5º da Constituição que proíbem a censura e asseguram a proteção à vida privada e
imagem das pessoas.
Nada sobre o valor da liberdade de
imprensa na democracia, a importância da fiscalização do governo pela mídia ou a função histórica desempenhada pelos jornalistas na denúncia de episódios de corrupção no
poder público. Nenhuma alteridade:
uma receita de bolo que, com certeza, gerou milhares de redações semelhantes entre si e involuntariamente parecidas com o discurso
emanado do Planalto.
O Enem é a única prova de abrangência nacional aplicada diretamente pelo Ministério da Educação aos
alunos do último ano do ensino médio. A maior parte das universidades
públicas usa os resultados do Enem
na pontuação dos candidatos dos
seus exames vestibulares. Por razões
óbvias, as escolas públicas e particulares o tomam como referência na
estruturação de conteúdos e métodos de ensino. Quando a redação do
Enem torna-se uma convocação para
que os estudantes reproduzam como
papagaios as palavras do presidente
da República, professores de todo o
país registram o recado.
As instruções contidas na prova do
Enem comandam a redação de uma
dissertação baseada "nas idéias presentes nos textos acima", ou seja, na
charge e nos extratos cuidadosamente selecionados para gerar um fim
político definido.
Qual seria a avaliação atribuída a
um candidato que optasse por distinguir os programas sensacionalistas de TV das denúncias de corrupção governamental estampadas na
mídia e por mostrar os perigos à liberdade de imprensa inerentes ao
projeto do CFJ?
Os regimes autoritários sempre almejaram controlar as idéias veiculadas na escola e promover entre as
crianças e jovens os "valores patrióticos", ou seja, para todos os efeitos
práticos, os seus próprios valores e
ideologias. Na democracia, o governo tem o dever de promover a educação pública, mas, igualmente, o de
respeitar a autonomia pedagógica do
processo de ensino. O governo não
se confunde com o educador e não
pode entrar na sala de aula. A transgressão desse imperativo ético e político pelo Enem configura um perigoso precedente.
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