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GUSTAVO FRANCO
Machado comunista
A
CONVIVÊNCIA , nem sempre tranqüila, no mesmo governo, entre marxistas de
carteirinha e as pessoas que redigem as atas do Copom me sugere
uma história interessante.
Tudo começa em um episódio famoso: em 28 de setembro de 1908,
um jovem de 17 anos, toma a barca
da Cantareira rumo ao Cosme Velho com o intuito de visitar Machado de Assis em seu leito de morte.
Atendido ao portão, identificou-se
apenas como um admirador. Os
medalhões presentes opinaram
contra a entrada do rapaz, mas o
próprio Machado, acordado pelo
burburinho, deixou que ele entrasse, ajoelhasse ao lado de sua cama e
lhe beijasse a mão, partindo logo
em seguida.
Machado deixaria este mundo
na madrugada seguinte, mas a
identidade do jovem foi revelada
apenas em 1936; era Astrogildo Pereira, líder comunista que havia sido expulso do Partidão quatro anos
antes por ser considerado um
"intelectual pequeno-burguês e
oportunista".
Astrogildo continuou comunista
e admirador de Machado de Assis
ao longo de toda a sua vida, sendo
certo que essas duas paixões conviveram dialeticamente, talvez lhe
trazendo alguns dissabores. Sua
carreira como revolucionário certamente não foi ajudada pelo seu
amor à literatura. E, menos grave, o
Astrogildo critico literário gastou
muito tempo tentando encontrar
materialismo dialético em Machado de Assis.
Na verdade, é meio constrangedor o desinteresse de Machado
diante da obra de Marx e Engels, o
que Astrogildo minimiza alegando
que o "ceticismo" machadiano "pode ser o ponto de partida para uma
atitude revolucionária". Mais séria,
todavia, é uma passagem em que
Quincas Borba, já demente, arruinado e tendo inventado um sistema filosófico libertário, o humanitismo, diz para Brás Cubas:
"Não vá sem eu lhe ensinar a minha filosofia da miséria...".
E Astrogildo põe-se a negar que
Machado estivesse fazendo pilhéria com a "Miséria da Filosofia",
importante panfleto de Marx. Mas
não lhe ocorreu que a ofensa fosse
maior ainda, ou seja, que filosofia
humanitista fosse uma alegoria do
socialismo. Conforme explica
Quincas Borba: o princípio da humanitas é "o encontro de duas expansões", uma das quais é vitoriosa, donde "o caráter conservador e
benéfico da guerra" e o célebre
exemplo das duas tribos famintas
diante de um campo de batatas. "A
paz, neste caso, é a destruição; a
guerra é a conservação". Para os
vencidos, o extermínio e a compaixão; "ao vencedor, as batatas".
Não há dúvida de que é de tubérculos -e de outros itens a pressionar o custo de vida- que os revolucionários de outrora vêm tratando.
gh.franco@uol.com.br
GUSTAVO FRANCO escreve aos sábados nesta
coluna.
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