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CARLOS HEITOR CONY
Flor do asfalto
RIO DE JANEIRO - Uma opinião
pessoal, sujeita a chuvas, trovoadas
e enchentes como as de São Paulo.
Ou piores, porque estanques na
memória estagnada do menino que
fui sem nunca ter sido realmente
um menino. Acho que o mundo era
outro. Ao cair da tarde, acendia-se a
primeira lâmpada da casa. Minha
madrinha era a primeira a saudar a
luz que iluminaria o nosso jantar:
"Boa noite!" E todos se cumprimentavam, como se estivessem
chegando de uma jornada que ficara para trás.
Era hora, também, de os vizinhos
se saudarem. E os boas-noites se
cruzavam de varanda a varanda,
passando pelas cercas de buganvílias -que toda casa tinha uma. E
nosso vizinho aparecia já de pijama,
arrastando os chinelos.
Ia de casa em casa levando o seu
boa-noite. Chamava-se Azevedo,
Azevedo não sei de quê. Meu pai dizia que Azevedo era maluco, mas
boa alma -antigamente havia essa
expressão: boa alma. Pois, com sua
boa alma, seu pijama e chinelos,
Azevedo dava boa-noite a todos e,
por mais que pareça improvável, isso fazia nossa noite realmente boa.
Depois, outras luzes eram acesas,
o cheiro das buganvílias ficava suspenso no ar até que chegava o cheiro do jantar que estava indo para a
mesa. A cabeça da madrinha, muito
branca e limpinha, começava a curvar sobre o peito, ela jamais dormiria sem antes ver acesa a primeira
luz da casa, sem antes celebrar a cerimônia da paz com a senha de seu
boa-noite.
Na casa ao lado, além das buganvílias, Azevedo preparava-se para
dormir com seu pijama, seus chinelos e sua boa alma. Um cair de noite
com cheiros bons de uma vida que
corria sem pressa. A novidade era o
rádio que trazia um pouco da perfídia do mundo para a nossa paz:
"Deixou-me a flor do asfalto abandonado, nesta ansiedade louca do
desejo...".
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