São Paulo, domingo, 07 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Anos dos gafanhotos

RUDIGER DORNBUSCH


A América Latina estava se saindo bem quando o dinheiro fácil entrava, mas essa época está praticamente terminada


As más notícias não param de chegar à América Latina. As condições econômicas se agravam em praticamente toda a região, a coesão social se desfaz e a instabilidade política aumenta. Não surpreende, já que boa parte da América Latina passou os últimos 20 anos indo a lugar nenhum. Os bens eram vendidos e as dívidas nacionais inchavam, mas não foi conquistado praticamente nada benéfico e duradouro. Esses foram anos em que quem se alimentou foram os gafanhotos.
Nos últimos 20 anos, o PIB per capita latino-americano cresceu em média 0,35% ao ano. Nesse ritmo, uma economia levaria 200 anos para dobrar de tamanho. Na Ásia, o padrão de vida dobra a cada dez anos. Com um crescimento tão anêmico, como pode a América Latina esperar ser capaz de competir no comércio mundial, a não ser por meio da redução dos salários? A culpa da estagnação econômica não é do azar, mas do mau governo. Se a América Latina não mudar, ela pode começar a se parecer cada vez mais com a África.
São quatro os fatores que conduziram a região a esse rumo.
Em primeiro lugar, na corrida ao ouro que foi a privatização latino-americana, tudo foi a leilão, desde as empresas prestadoras de serviços públicos até manufatureiras. Durante um período curto, as vendas desses bens ajudaram a equilibrar os Orçamentos nacionais e forneceram recursos para manter o consumo. No fim das contas, a receita da privatização rendeu muito pouco em matéria de infra-estrutura melhor ou exportações mais competitivas.
Pior ainda, a venda das estatais foi acompanhada pela contração de empréstimos externos maciços. Em alguns casos, especialmente o da Argentina, os empréstimos contraídos por compradores domésticos esgotaram todas as linhas de crédito disponíveis. Outros países não caíram até o nível da Argentina, mas conseguir crédito passou a ser um problema para praticamente todos os países da América Latina.
Em segundo lugar, como as reformas não resultaram em prosperidade, a população já está farta delas. Os fluxos de capital que entraram nos países geraram um efeito de riqueza, mas apenas enquanto duraram. Quando o dinheiro parou de entrar, a riqueza acabou. Nenhum político em sã consciência vai pensar em propor mais uma década de reformas estruturais. No entanto, sem reformas em maior número e mais profundas, não haverá condições prévias que possibilitem o crescimento econômico e atraiam investimentos, sem os quais não há crescimento possível.
Esse dilema do desenvolvimento aponta para o terceiro fator: a política ineficaz. Desapareceram os governos que operavam numa linha tecnocrática e que viam o crescimento econômico como uma maré ascendente que levanta todas as embarcações. Na Argentina, sucedem-se os presidentes ineptos. As instituições são derrubadas, os direitos de propriedade questionados e permanece um esforço de redistribuição aleatório e cada vez mais corrupto.
A situação não é muito melhor no Peru e na Venezuela; e o Brasil corre o risco de começar a enveredar pelo mesmo caminho dentro em pouco.
A popularidade de Luiz Inácio Lula da Silva e de sua equipe, que lideram as pesquisas de intenção de voto nas eleições presidenciais brasileiras, serve como aviso de que boa parte do público latino-americano está disposta a rejeitar os governos tradicionais.
No México, a democratização trouxe estabilidade maior, mas ela pode se mostrar efêmera. O peso está sobrevalorizado ao extremo. Se a balança comercial externa se deteriorar ainda mais, a economia enfrentará um pouso difícil.
O último fator a levar em conta é o índice baixíssimo de poupança, que é endêmico nas Américas.
A Venezuela sonha com os anos gordos da Opep, na década de 70 -que ela deixou passar em branco porque não desenvolveu seu setor petrolífero. Os ricos da Argentina estão em férias em Miami, talvez para sempre. Brasil e México são ótimos exemplos de países que, em vez de poupar, venderam seu patrimônio e contraíram empréstimos.
O contraste com a Ásia é notável. Consideremos a China, onde os índices de poupança e investimento são de quase 40%, onde a conta corrente apresenta superávit e não há dívida pública. As instituições governamentais favorecem o mercado e a população é instruída, disciplinada e flexível em seus estudos. As recompensas para quem demonstra iniciativa e assume riscos são imediatas.
É verdade que a China permanece um país pobre. Seu PIB per capita é a metade do brasileiro. Mas, com o crescimento na região costeira chinesa chegando a possivelmente 15% ao ano, quem pode duvidar seriamente de que o país vá superar o Brasil nos próximos 15 anos?
A América Latina estava se saindo bem quando o dinheiro fácil entrava, mas essa época está praticamente terminada. Assim, podemos prever mais notícias ruins -econômicas, sociais e políticas-para os próximos anos. Demagogos como o venezuelano Hugo Chávez ou Carlos Menem podem soar como piada de mau gosto, mas quem se importa com o destino da América Latina não deveria estar dando risada.
Rudiger Dornbusch, 60, é professor de economia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA. Foi chefe da assessoria econômica do FMI e do Banco Mundial.
Tradução de Clara Allain



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