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TENDÊNCIAS/DEBATES
Morte digna
RAUL CUTAIT
A vida é a dádiva maior da natureza. O homem, ser privilegiado na
escala filogenética, dela usufrui empregando suas competências emocional,
afetiva, intelectual e física, sujeitas às
inevitáveis limitações pessoais e ambientais. Contudo, quaisquer que sejam
as características da vida de cada um de
nós, o fato é que um dia ela termina.
Se em séculos passados guerras e epidemias dizimavam populações, no
mundo contemporâneo as causas de
morte mais comuns são as relacionadas
com as doenças crônico-degenerativas,
em especial as cardiovasculares e o câncer, decorrentes do crescente aumento
da expectativa de vida. Por outro lado,
novos conhecimentos médicos, alta tecnologia diagnóstica e terapêutica, estruturas hospitalares mais sofisticadas,
além de médicos mais bem preparados
permitem prolongar vidas de pacientes
de forma inacreditável até pouco tempo
atrás. Contudo essa nova ordem gera
um novo problema: quanto é possível
tratar de uma doença e até onde isso é o
melhor para o doente? Na sequência,
quando é o momento de não mais tratar
o paciente e aceitar sua morte, em benefício de um fim de vida menos sofrido e
mais digno?
Esse questionamento faz parte do dia-a-dia de muitos médicos que, treinados
para preservar a vida e dar-lhe qualidade, têm, no entanto, que aprender a
conviver com a morte, lei maior do universo. Aí vem a questão, abordada em
parte por Rubem Alves em seu intrigante artigo de 12/10 nesta Folha, sobre a
dignidade da morte e as ações médicas
("Sobre a morte e o morrer", pág. A3).
Desde já, declino minha solidariedade
em relação a sua preocupação, mas permito-me fazer algumas ponderações e
reflexões.
Existem situações clínicas em que a
morte é claramente inevitável e traz fim
ao sofrimento. Nesses casos, mesmo
que com tristeza, a decisão de não procurar mais manter a vida costuma ser
isenta de conflitos emocionais ou éticos,
tanto por parte do médico, quanto da
família e mesmo do próprio paciente.
No outro extremo, nós médicos convivemos com numerosos casos em que os
limites da preservação da vida e a inexorabilidade da morte não são claros, como acontece com certa frequência com
pacientes internados em UTI ou, então,
que apresentam doenças como o câncer, cujas fronteiras entre resposta terapêutica e insucesso não são bem definidas. Nesses casos, o médico tem de conviver com incertezas e administrar seu
posicionamento em função das características da doença, da disponibilidade
de recursos tecnológicos para o tratamento, da vontade nem sempre expressa do paciente, da posição da família e
-por que não?- de sua experiência e
conhecimento.
A inadequada comunicação com a família ou mesmo com o paciente não raro traz insegurança
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Concordo que, em situações limítrofes, nem sempre os médicos agem da
melhor forma, seja por inexperiência,
seja por insensibilidade. Por outro lado,
a inadequada comunicação com a família ou mesmo com o paciente não raro
traz insegurança e incompreensão, gerando desde a sensação de que "não se
está dando tudo para o paciente" até a
de que "estão exagerando" ou "forçando a barra".
Como resolver isso? Basicamente melhorando a comunicação entre as equipes de saúde, em especial os médicos, e
os pacientes e seus familiares, criando
uma relação calcada em confiança e
cumplicidade, que permite discutir os
inerentes aspectos técnicos sem desvinculá-los do lado emocional. A melhor
compreensão dos fatos é o caminho para as melhores decisões!
Não gostaria de terminar este texto
sem um depoimento pessoal. Como cirurgião, luto pela vida desde os tempos
de estudante de medicina e confesso
que nunca consegui encarar a morte
com a frieza que dizem que os médicos
têm que ter. Ao contrário, ela sempre
me fez refletir sobre o sentido da vida.
No meu íntimo, é como se eu quisesse
entendê-la, decifrá-la, até mesmo domá-la, talvez num vão exercício de me
preparar para a viagem final.
Luto contra a morte com dedicação.
Tento entender a posição do paciente
diante de sua doença, de maneira clara
ou nas entrelinhas. Procuro respeitar
sua vontade, colocando-a à frente da
tecnologia, por entender que a morte,
assim como a vida, merece dignidade.
No entanto confesso que, mesmo nesta
fase mais madura de minha vida profissional e pessoal, vivencio situações de
conflito quanto ao que fazer.
Felizmente, já passou a época em que
as decisões eram tomadas apenas pelos
médicos. Hoje, entende-se que tanto os
pacientes quanto suas famílias devem
também participar do encaminhamento das soluções médicas, em prol de posições mais humanas e dignas tanto para a vida, quanto para a morte.
Raul Cutait, 53, cirurgião gastrenterologista,
professor associado o Departamento de Cirurgia
da Faculdade de Medicina da USP, é presidente
do Conselho Médico e diretor-geral do Centro de
Oncologia do Hospital Sírio Libanês. Foi secretário da Saúde do Município de São Paulo (gestão
Paulo Maluf).
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