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TENDÊNCIAS/DEBATES
A herança maldita
JOSÉ MÁRCIO CAMARGO
O Ministério da Fazenda disponibilizou em seu site o documento
"Gasto Social do Governo Central: 2001
e 2002". O objetivo do documento é
mostrar os efeitos da incidência de impostos e da apropriação dos gastos sociais do governo federal na distribuição
de renda no país. Em linhas gerais, as
conclusões do documento são de duas
ordens:
"Primeiro, que a carga tributária é
quase que igualmente distribuída entre
os mais ricos e os mais pobres, tendo
pouca influência sobre a distribuição
inicial da renda pessoal; segundo, que,
ao contrário do que seria de esperar, os
gastos sociais do governo são, em grande parte, apropriados pelos 20% mais
ricos da população".
Como resultado, o efeito da estrutura
de taxação e dos gastos sociais sobre a
desigualdade na distribuição da renda
no Brasil é pífio, se comparado a outros
países do mundo ocidental. Enquanto
no Brasil a redução do coeficiente de Gini (que mede a desigualdade de renda)
em decorrência da intervenção governamental é de 12%, nos EUA é de 28% e,
na Bélgica, de 46%. Em outras palavras,
a intervenção do Estado brasileiro serve
apenas para replicar a desigualdade na
distribuição da renda no país.
Porém os problemas com a estrutura
dos gastos sociais no Brasil não se esgotam na constatação acima, que já seria
suficientemente grave para indicar que
o país precisa de mudanças importantes
em suas políticas sociais. Tomemos alguns pontos que consideramos particularmente perversos.
Em primeiro lugar, os gastos sociais
do governo federal brasileiro correspondem a 15,5% do PIB (se incluirmos
as renúncias fiscais hoje existentes), um
nível bastante elevado para os padrões
internacionais. Entretanto, desse total,
65,8% são destinados ao pagamento de
aposentadorias, 12,8% à área de saúde e
apenas 5,3% a educação e cultura.
Do total de gastos com educação e cultura, 56,3% vão para o ensino superior,
sendo que 75% desses recursos são utilizados para o pagamento de pessoal. Por
outro lado, para o ensino fundamental
são destinados 11,4% do total. Levando
em conta que 8% da população brasileira tem 65 anos ou mais, 30% têm 15
anos ou menos e que 40% das crianças
pobres brasileiras não completam o ensino fundamental, essa distribuição de
recursos entre aposentadorias, ensino
superior e ensino fundamental é particularmente perversa.
O grau de perversidade dessa distribuição é ressaltado quando analisamos
quem se apropria dos recursos. No Brasil, 50% dos gastos com aposentadorias
são apropriados pelos 10% mais ricos da
população, enquanto os 10% mais pobres se apropriam de uma parcela próxima a zero desses gastos. Por outro lado, 40% dos gastos com aposentadoria
são apropriados por pessoas com idade
entre 45 e 60 anos e aproximadamente
15% por pessoas com mais de 65 anos.
Ou seja, o sistema de aposentadorias
brasileiro é generoso com os jovens e
com os ricos, gerando pouca ou nenhuma proteção para os pobres.
Dos recursos destinados à educação,
56,3% são utilizados para garantir a gratuidade das universidades públicas, cujos alunos são, em grande parte, oriundos de famílias cuja renda per capita as
coloca entre as 10% mais ricas do país
(46% dos alunos dessas universidades
pertencem a esse tipo de família). Por
outro lado, 11,4% se destinam ao ensino
fundamental. Em um país no qual 50%
das crianças vivem em famílias pobres,
das quais 80% não completam o ensino
fundamental, tal alocação de recursos
por parte do Estado é uma aberração.
Como pretendemos reduzir a pobreza
no Brasil, se 40% de nossas crianças não
completam o ensino fundamental, ao
mesmo tempo em que o governo, em
lugar de concentrar esforços para mantê-las na escola, transfere, através de
seus programas sociais, em média R$
8.000 por ano para os 10% mais ricos e
R$ 400 por ano aos 10% mais pobres?
A intervenção do Estado brasileiro serve só para replicar a desigualdade na distribuição da
renda no país
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O estudo não propõe soluções específicas para esses problemas, mas, implicitamente, aponta caminhos para tal. É
necessário reformar nossos programas
sociais de modo a favorecer os mais pobres e, consequentemente, reduzir as
transferências para os mais ricos. Várias
são as políticas capazes de atingir esse
objetivo, tais como diminuir o valor das
aposentadorias excessivas, como está
fazendo a reforma da Previdência, e cobrar mensalidades nas universidades
públicas, onde estão concentrados os
estudantes das famílias ricas. De outro
lado, concentrar recursos na geração de
incentivos à manutenção das crianças
pobres na escola, um dos objetivos do
Bolsa-Família e do Bolsa-Escola, também aponta na direção correta.
Os resultados apresentados no estudo
do Ministério da Fazenda mostram que
reduzir significativamente a pobreza no
país não é uma tarefa fácil, mas não é
impossível. Depende de vontade política para enfrentar as resistências dos
grupos que hoje se beneficiam das
transferências governamentais. As reações ao documento, tanto à esquerda
quanto à direita, assim como as dificuldades para a aprovação da reforma da
Previdência, mostram que essa não será
uma tarefa fácil. O corporativismo e a
defesa de privilégios, disfarçados na
idéia de universalização dos programas
sociais e, quem diria, na afirmação de
que os 10% mais ricos (cuja renda média anual é de R$ 38.543) são, na verdade, a classe média, dão o tom da dificuldade de atingir esse objetivo.
Reconhecer o problema é o primeiro
passo para chegar a uma solução, mas é
um passo decisivo. E o mais importante,
ao produzir o documento, reformar a
Previdência e priorizar o Bolsa-Família,
o atual governo mostra que está disposto a atacar essa "herança maldita" que
nos legou a sociedade brasileira.
José Márcio Camargo, 56, doutor em economia
pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(EUA), é professor do Departamento de Economia da PUC-RJ e sócio da Tendências Consultoria
Integrada.
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