São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES O buraco da fechadura
RUBEM ALVES
Mudou mesmo? Se mudou, esse seria um fenômeno psicológico a ser estudado. Ou não mudou, mas fez de conta que mudou? Nesse caso, você estaria dizendo algo que não era a sua verdade. O partido proíbe o pensamento divergente? Teremos de "pensar tudo o que seu mestre mandar", chame-se papa ou bases? E a democracia, onde fica? Você disse. Se disse, é porque é opinião do partido. E tanto é assim que o partido não o desautorizou. Assumo, então, que o que você disse é parte do programa do partido. Segundo os jornais, a um público de pastores evangélicos você declarou ser favorável a que o ensino da Bíblia seja feito nas escolas; esse é o buraco da fechadura... Ao fazer isso, você tocou a menina dos meus olhos, a educação. Fiquei com medo... Eu não sabia que você era assim apaixonado pela Bíblia, ao ponto de fazê-la parte do programa educacional do seu partido. Você é mesmo assim apaixonado pela Bíblia? Imagino a alegria dos pastores que o ouviam, vendo-se como futuros professores de Bíblia em nossas escolas públicas. Ou sua declaração teve o objetivo de ganhar votos evangélicos? Essa é uma hipótese perversa que me recuso a levar em consideração, pelo simples fato de que ela transgride a posição rigidamente ética que tem sido a marca bonita do PT. Como você sabe, as esquerdas sempre desconfiaram das religiões e seus clérigos; e isso por duas razões. Primeiro, as relações confortáveis entre as religiões dominantes e o poder. Segundo, pelo efeito alienante das suas doutrinas. Lembra-se de Marx? Fiquei surpreso pensando que sua proposta representa um desvio das posições clássicas dos partidos de esquerda. Mais do que isso, ela representa um retrocesso em relação às conquistas da democracia liberal, de direita, que separou religião e Estado. E ainda mais, é sabido que tem havido um conflito secular entre os pensamentos religioso e científico. Não podemos nos esquecer de Giordano Bruno, Galileu e Darwin. E eu que imaginava que o programa educacional do PT seria secular e formado pela ciência! O que vi através do buraco da fechadura me provocou grande confusão mental. É preciso levar em conta que, se a Bíblia vai ser ensinada nas escolas, por uma exigência democrática, também a Torá, o Corão, o Evangelho segundo o espiritismo, o Bhagavad-Gita... Sua declaração me fez confuso acerca das propostas educacionais do PT. Essa perplexidade não é só minha. Amigos meus do PT também expressaram o mesmo espanto. O que está em jogo é coerência, ética, credibilidade. O que vi pelo buraco da fechadura não combina com o que está escrito na fachada. Por favor, Lula, ajude-me a entender... Rubem Alves, 68, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp, autor de, entre outras obras, "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Adolpho José Melfi: A realidade da USP Próximo Texto: Painel do Leitor Índice |
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