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MARCOS NOBRE
Homenagens e ideologias
JOÃO GILBERTO não agüenta
mais ouvir falar de bossa nova.
João Donato idem. É o eterno
problema das homenagens: ninguém gosta de se ver enclausurado
no passado, como se não tivesse
continuado a viver e a ter novas experiências.
Ainda mais porque não se trata
de uma pessoa ou instituição, mas
de um determinado jeito, de uma
determinada bossa. Dá para ouvir
alguma coisa e dizer: "é bossa nova". Mas não dá para definir.
As homenagens resolveram que
a bossa nova nasceu em 1958, com
a gravação e a distribuição do compacto com "Chega de Saudade" e
"Bim Bom". E, mais significativo,
fixaram a bossa nova naqueles seus
primeiros anos.
Ficou estabelecido que a BN foi a
música do desenvolvimentismo
dos anos JK. Que era utopia de
uma modernização suave. Uma
imagem que ficou pendurada no ar
depois da ruptura brutal do golpe
militar de 1964.
Isso tem algo de verdade, com
certeza. Só que diz mais sobre o
momento atual do que sobre a própria BN. Tem a ver com as comemorações da obtenção do "grau de
investimento" e com a celebração
de uma "classe média" em expansão. É como se o país tivesse retomado aquela modernização sem
sustos. Como se a nova classe média fosse aquela que produzia e
consumia BN há 50 anos.
Como toda celebração ideológica, essa também tem algo de verdadeiro. Mesmo sabendo que "grau
de investimento" e "nova classe
média" não passam de carros alegóricos e que os passistas continuam mesmo é no chão da avenida.
É que a BN realizou nosso "ajuste cultural" muito antes do nosso
"ajuste econômico internacional".
O que se fez em termos musicais
vai muito além do quadro "nacional-desenvolvimentista" em que o
país ficou preso por cinco décadas.
Com seus arranjos, Radamés
Gnattali vestiu o samba de casaca
já na década de 1940 nas transmissões da Rádio Nacional. Esse primeiro grande passo ganhou um
sentido inteiramente novo com o
trabalho de Tom Jobim e a famosa
batida de João Gilberto: criou um
quadro musical flexível o suficiente para permitir incorporar o que
de melhor se fazia fora do Brasil.
Fixar a BN nos seus inícios esconde a transformação que significou o surgimento do rótulo "música popular brasileira" na década de
1960. Afinal, foi a recriação dos ritmos afro-brasileiros e a abertura
da BN para toda a sorte de influências que permitiu o surgimento de
uma música que podia receber sem
medo não só o jazz e o impressionismo mas também o rock, o reggae e muito mais.
Criamos uma música muito melhor do que o país que conseguimos
construir. É isso o que celebramos
na bossa nova.
nobre.a2@uol.com.br
MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta
coluna.
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