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TENDÊNCIAS/DEBATES
Reincluir a população de rua
CLÁUDIO HUMMES
A cidade de São Paulo foi ferida
pelo massacre de membros do povo de rua, mortos violentamente na calada da noite, enquanto dormiam nas
ruas e praças do centro, nas madrugadas de 19 e 22 de agosto passado. Apurar
e punir esse crime bárbaro constitui o
mínimo do que deve ser feito, junto
com nossa dor e oração pelas vítimas.
Entretanto urge também olhar de
frente a real situação do nosso povo de
rua e definir programas para seu pleno
resgate.
Nosso apelo é por políticas públicas
com programas eficazes, prioritários e
permanentes de reinclusão social e econômica, plena e conclusiva. Programas
emergenciais e assistenciais de melhoria
de suas condições são muito bem-vindos e absolutamente necessários, mas,
porque sozinhos não conseguem tirá-los da rua, são insuficientes, pois não
concluem sua reinclusão.
De fato, programas emergenciais e assistenciais foram multiplicados e aperfeiçoados ultimamente na cidade.
Exemplificando, cito o aumento, com
cerca de 7.000 vagas, e a melhoria, com
práticas sociais mais adequadas, dos albergues públicos municipais -agora
seis- e um do Estado, tanto assim que
nunca as vagas estão plenamente preenchidas, segundo informação do governo municipal -ainda que, se todos os
moradores de rua fossem aos albergues,
ficariam faltando cerca de 3.000 vagas.
Há muita gente de rua que, por motivos
variados, resiste a ir aos albergues.
Também a alimentação ficou mais
acessível, com os restaurantes Bom Prato, do governo estadual, e com a distribuição gratuita de alimentos por grupos
e associações de solidariedade. Cresceu
o número e a dedicação de obras sociais,
ONGs e grupos religiosos católicos e de
outros credos que acolhem. Mas tudo
isso junto não consegue tirar da rua esses excluídos e reincluí-los na sociedade. Ora, a rua degrada inexoravelmente
a condição dessas pessoas, que se sentem afundar sem esperança.
Acompanhado pelo padre Júlio Lancellotti e pelos padres dirigentes da
Aliança de Misericórdia e da Toca de
Assis, que se dedicam aos moradores de
rua, no dia 25 de agosto encontrei-me
com o governador Geraldo Alckmin e
sua equipe para discutir o problema e
tomar decisões. Resultou uma nova
parceria entre governo e igreja em favor
do resgate pleno do povo de rua.
Primeiramente, chegamos juntos à
conclusão de abrir imediatamente 500
vagas de emprego numa frente de trabalho do governo do Estado. Os que serão acolhidos nessa frente receberão,
além do salário mensal de R$ 280, uma
cesta básica, vale-transporte e cursos de
qualificação profissional. Quer-se assim
iniciar um resgate que vá além da duração legalmente possível de uma frente
de trabalho. Quer-se tornar os participantes autônomos, capazes de se reintegrarem ao mercado de trabalho no final
do processo. Talvez seja necessário
agregar outros programas sociais de recuperação dos participantes, para que
se consolide o resgate pleno. Além disso, já que há mais de 10 mil moradores
de rua, dever-se-á ampliar o programa
no futuro.
A população de rua é a que mais necessita de amparo, para poder voltar a ser incluída
na sociedade
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Outra providência decidida pelo governador foi abrir novos espaços construídos para acolher esses pobres, no
centro da cidade, em parceria com a
Igreja Católica, especificamente com a
Aliança de Misericórdia e a Toca de Assis. Em favor dos moradores de rua que
precisam de assistência médica, especialmente os portadores do HIV, portadores de problemas mentais e doentes
de câncer, foi constituída uma parceria
com a Unifesp, a Secretaria Estadual de
Saúde e a Toca de Assis.
Mas há muitos moradores de rua que,
por idade ou enfermidade, não podem
voltar ao mercado de trabalho. A esses o
poder público terá que assumir plenamente em instituições próprias e apropriadas, talvez em parceria com instituições religiosas ou da sociedade civil organizada, onde possam viver com dignidade. Isso parece um sonho, tanto
mais que sempre haverá pessoas que
acabarão de uma ou outra forma na rua.
Por isso esses programas de reinclusão
social precisarão ter respaldo em lei,
com verba própria prevista em orçamento, em permanente execução.
Contudo muitos não querem sair da
rua, seja por doença mental, seja pela
deterioração e perda de auto-estima
que os estimula à autodestruição, seja
pela ilusão de maior liberdade, menos
compromissos, fuga de situações às
quais não querem voltar. Para esses é
preciso programas próprios de recuperação da auto-estima e da convicção de
que a rua não tem como oferecer condições de dignidade e cidadania suficientes para um ser humano em nossa sociedade atual.
Tudo isso só será possível se se der
prioridade à pessoa humana. Obviamente, muitas outras coisas são necessárias, até mesmo cuidar das ruas e praças da cidade, mas, quando se destinam
os recursos disponíveis, a prioridade,
repito, devem ser as pessoas. Ora, a população de rua é a que mais necessita de
amparo, para poder voltar a ser incluída
na sociedade e ali gozar, como todos os
demais, de vida digna e do exercício de
sua cidadania.
Entretanto não posso concluir sem
me referir ao bárbaro atentado terrorista numa festa escolar em Beslan, Ossétia
do Norte, na Rússia, que resultou no
massacre indiscriminado de civis, dentre os quais, entre mortos e feridos, centenas de crianças. A violência brutal do
terrorismo procura apavorar a sociedade mundial, torná-la refém de sua crueldade desumana, perversa e mortífera,
não recuando nem diante de crianças
inocentes e indefesas, arrastando-as
sem piedade para o pavor, o massacre e
a morte em seus atentados insanos.
Dom Cláudio Hummes, 70, é cardeal-arcebispo
metropolitano de São Paulo. Foi arcebispo de
Fortaleza (CE) e bispo de Santo André (SP).
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