São Paulo, domingo, 14 de dezembro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Europa e Estados Unidos
LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
Num primeiro momento, o apoio decidido dos EUA, vigente nos quadros da Guerra Fria, foi fundamental à recuperação econômica européia. E, mais que a destruição do aparelho físico europeu, o desmantelamento de suas velhas instituições, exceto as da Grã-Bretanha, foi providencial para permitir as reformas institucionais e o estabelecimento de um Estado social-democrático. Enquanto as instituições dos EUA, que haviam logrado reformar-se, com a Grande Depressão e o New Deal, na direção do "welfare state", voltavam a ficar paralisadas sob uma Constituição Federal só aparentemente flexível, as instituições européias entravam em pleno processo de reforma. Nesse processo, além da guerra, um outro fator fundamental a permitir a reforma institucional permanente foi a decisão dos europeus de se integrarem. A União Européia é uma obra de engenharia e inovação institucional sem precedentes. Pela primeira vez na história vemos se constituir um quase-Estado-nação por meio da decisão voluntária de várias nações. A primeira grande engenharia institucional desse tipo ocorrera nos EUA, quando as 13 províncias se uniram, mas ali não eram nações diferentes. Durante os anos 90, uma ofensiva ideológica neoliberal proveniente dos EUA, apoiada em um crescimento vigoroso do país, procurou reverter o quadro. A mensagem que se lançou ao mundo, e que a América Latina aceitou de forma pouco crítica, foi a de que a democracia liberal americana seria mais eficiente do que a social-democracia européia. De fato, alguns exageros na proteção social haviam reduzido relativamente a produtividade na Europa. Exageros que já foram em grande parte corrigidos por reformas, sem ameaça ao Estado do bem-estar. E principalmente sem pôr em risco o princípio de solidariedade, que inspira essa proteção e incentiva poderosamente o trabalho de cada um, de modo a mais que compensar os prejuízos dela provenientes. Enquanto isso, os EUA continuavam incapazes de reformar suas instituições, que se tornavam cada vez mais rígidas, e viam aumentar o fosso entre os pobres e os ricos e entre os democratas social-liberais e os conservadores ameaçados pelo fundamentalismo. Durante os anos 90, as estatísticas mostram que o grande crescimento dos EUA não foi, na média, superior ao do europeu. Agora, com a revalorização do euro, tudo indica que, afinal, a elevação dos padrões de vida na Europa foi maior de 1990 até hoje do que nos EUA. Quanto à qualidade de vida, não há dúvida de que a européia -e aqui falo apenas dos países mais desenvolvidos- é substancialmente superior. Não só porque a distribuição de renda é mais igual, não só porque os serviços sociais são mais universais e de melhor qualidade, mas também porque a segurança pessoal é maior e os índices de criminalidade muito menores. Tudo isso não significa que a Europa seja um paraíso. Depois de permanecer o último mês na França e de ter passado duas temporadas na Inglaterra, sei bem como os europeus se preocupam com seus problemas, como se indignam com os erros dos seus políticos, como estão sempre envolvidos em um processo de debate público intenso e respeitoso. Ainda que os EUA sejam insuperáveis em três áreas -a tecnologia da informação, a universidade e o cinema-, a Europa possui instituições claramente mais modernas e flexíveis, que garantem um sistema social mais equilibrado, uma economia mais solidária e tão produtiva quanto a americana e uma democracia mais avançada. Nós, no Brasil, desde a transição democrática de 1984/ 85, vivemos um processo de desenvolvimento político e social intenso, que, porém, é compensado negativamente pela semi-estagnação da economia. No nosso processo de desenvolvimento econômico e social, não podemos aceitar que os países ricos nos exportem instituições, mas podemos e devemos importá-las, como importamos conhecimento e tecnologia, e adaptá-las à nossa realidade. E, nesse processo, devemos olhar mais para o exemplo europeu do que para o do gigante americano, ele próprio imerso em uma crise de identidade sem precedentes. Luiz Carlos Bresser Pereira, 69, é professor de economia na FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney). Site: www.bresserpereira.org.br Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Rubens A. Barbosa: A Alca depois de Miami Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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