|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
Um ano depois
CELSO LAFER
A posição brasileira é clara: a resposta aos desafios atuais é mais multilateralismo,
e não menos
|
Qual o significado do primeiro
aniversário dos ataques terroristas, nos EUA, que marcaram o dia 11 de
setembro? Além da dor e do sofrimento
causados pela perda brutal de cerca de
3.000 vidas inocentes de inúmeras nacionalidades, esses atos trouxeram profundas implicações no plano das relações entre os Estados, em particular no
campo da segurança internacional.
Com efeito, embora o terrorismo não
constitua um fenômeno novo, seu emprego na escala e nas condições verificadas em 11 de setembro contra o principal centro de poder do mundo criou
uma nova situação.
Para fazer frente a um inimigo difuso,
mesmo que se lhe tenha imputado o
rosto de Osama bin Laden, seguiu-se
uma reação igualmente difusa, ainda
que inicialmente concentrada nas ações
militares levadas a cabo pelos EUA contra bases terroristas no Afeganistão.
Nestas os EUA dispuseram de ampla latitude de ação, decorrente não só de sua
superioridade militar, mas também do
abrangente escopo legitimador para tais
ações, autorizadas pela linguagem das
resoluções aprovadas pelos órgãos máximos da ONU: a Assembléia Geral e o
Conselho de Segurança.
Passada a fase mais aguda das operações militares dos EUA no Afeganistão
-que contaram com expressiva solidariedade internacional e o relevante
apoio logístico e de informações de uma
multiplicidade de Estados-, o mundo
permanece, no que diz respeito aos temas internacionais de segurança, envolto num "tempo de tormenta e vento esquivo ("Lusíadas", 5, 18)". Vivemos uma
situação-limite entre a paz e a guerra, e
os atentados de 11 de setembro, ao provocarem um deslocamento do eixo diplomático, são emblemáticos de transformações fundamentais que se operam no plano internacional.
Desde o final da Guerra Fria, o mundo
opera com base em duas lógicas contraditórias: a da globalização e a da fragmentação. Em ambos os processos, verifica-se tanto maior proeminência relativa de atores não-governamentais "vis-à-vis" os governamentais, quanto
maior capacidade de ação por parte daqueles de operarem em redes -uma
das consequências da globalização.
Estas, no entanto, podem servir quer
ao bem -para melhorar a educação,
promover o desenvolvimento sustentável e o respeito aos direitos humanos-,
quer ao mal, como o terrorismo, o tráfico de drogas, de armas, a lavagem de dinheiro. A própria estrutura das organizações terroristas modificou-se: as entidades altamente hierarquizadas nos
anos 70 e 80, como Al Fatah, Brigadas
Vermelhas, Baader-Meinhof, dão lugar
hoje a grupos "ad hoc" descentralizados
e operando em redes.
Para isso tem contribuído o que pode
ser qualificado como a fragmentação
das cadeias de poder, que coloca em
questão o monopólio do uso legal da
força como clássico atributo do Estado
no seu âmbito territorial. É neste contexto que se situa o fenômeno da desagregação e secessão de Estados (URSS,
Bálcãs) ou a perda de controle de parte
de seus territórios para poderes ligados
a milícias, guerrilha, terrorismo ou tráfico de drogas. O exemplo mais notório
é o Afeganistão, base da Al Qaeda.
Percebe-se assim, com mais clareza, a
natureza emblemática do 11 de setembro na realidade contemporânea, que
coloca em questão a racionalidade dos
mecanismos tradicionais da diplomacia, da política, da economia e da própria guerra. Na Primeira Guerra Mundial, cerca de 10% dos mortos eram civis; parcela que sobe para 60% na Segunda. Hoje, os civis são eles próprios
alvos imediatos, não apenas no caso dos
atentados aos EUA, mas também nos
conflitos que opõem israelenses e palestinos, indianos e paquistaneses, ou hutus e tutsis, como no caso de Ruanda.
Como fazer frente aos piores efeitos
desses movimentos? A reação inicial
dos EUA, país vitimado pelos atentados, foi a do recrudescimento, nos seus
governantes, de uma leitura hobbesiana-maquiavélica da realidade internacional, sobretudo no plano estratégico-militar. Daí a tendência ao solipsismo
naquele país. Esta se percebe não apenas na intensidade de suas ações internacionais de prevenção e combate ao
terrorismo e no debate sobre operações
de guerra no Iraque, mas também em
suas posições frequentemente refratárias a acordos multilaterais -como nas
áreas ambiental (não-ratificação do
Protocolo de Kyoto), de desarmamento
(não-ratificação do Tratado de Proibição Completa dos Testes Nucleares) ou
jurídica (evitar jurisdição do Tribunal
Penal Internacional sobre nacionais
norte-americanos).
Pela forma de sua inserção no mundo,
tradição e experiência diplomática, o
Brasil tem uma leitura grociana da realidade internacional, que privilegia a gestão dos conflitos por meio do direito e
da diplomacia. Para o Brasil, o 11 de setembro agravou o déficit de governança
prevalecente no sistema internacional,
para realçar um dos termos recorrentes
suscitados pelo presidente Fernando
Henrique Cardoso desde o início do seu
primeiro mandato. Diante desse agravamento, a posição brasileira é clara: a
resposta aos desafios atuais é mais multilateralismo, e não menos.
A complexidade do mundo contemporâneo em todas as áreas, inclusive a
de segurança internacional, é tão grande que nenhum ator internacional, nem
o mais forte, pode, isolado e sem cooperação, encaminhar soluções. Esta é a lição, passado um ano dos atentados que
chocaram o mundo.
Celso Lafer, 61, professor titular da Faculdade
de Direito da USP, é ministro das Relações Exteriores. Foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo FHC) e das Relações Exteriores (governo Collor).
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Celso Furtado: Revisitando JK
Índice
|