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Revisitando JK
CELSO FURTADO
Juscelino perdeu o controle ao tomar conhecimento das condições impostas
[pelo FMI]
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Foi a seca que flagelou o Nordeste
em 1958 que me aproximou do presidente Kubitschek, cujo centenário de
nascimento se comemorou no último
dia 12. As oposições tinham vencido as
eleições na Bahia e em Pernambuco, e as
tensões sociais se agravavam com a
emergência das Ligas Camponesas, sob
a liderança de Francisco Julião. Havia
um clima de alarme, os militares pensando em intervenção federal.
Numa hábil manobra, o presidente
retomou a iniciativa política, convocando os governadores e outros líderes para elaborar um plano de desenvolvimento regional, que coube a mim dirigir. O Nordeste passaria a ter a mesma
prioridade que a construção de Brasília.
O único título que eu tinha era o de ser
nordestino e de haver escrito um livro
em que dizia ser necessário repensar o
Brasil e dar outro rumo a seu desenvolvimento, considerando as disparidades
regionais herdadas da época colonial.
O Nordeste não estava incluído no
Plano de Metas. Mas a grande seca de
1958 pôs a nu a cruel realidade da região. O governo teve de atender com
obras emergenciais a mais de 500 mil
pessoas. Escândalos vieram à tona, a indústria da seca entrou em ebulição, com
suas conhecidas sequelas.
Juscelino não era homem de recuar ou
desanimar. Podia ser demasiado impaciente e, por isso, precipitar uma solução. Necessitava tanto ter fé em si mesmo que todo esmorecimento lhe parecia derrotismo. Dispôs-se, com firmeza,
a implementar o nosso plano "Uma política de desenvolvimento para o Nordeste". Assim nasceu, em 59, a Sudene.
A lei que a aprovou trazia uma novidade de alcance constitucional: pela primeira vez praticava-se um sistema de
tomada de decisões integrando os governos federal e estaduais. A fórmula jurídica embutida na lei consistiu na adesão voluntária dos governadores, que
participavam dos debates pensando,
em primeiro lugar, na ótica regional. Da
união de todos resultou a força política
do novo órgão.
Cabia, de imediato, enfrentar o calcanhar-de-aquiles do Nordeste: a produção de alimentos. Para isso, desenvolvemos a grande irrigação no São Francisco, com água abundante e energia barata. Também foi preciso estancar a transferência de recursos financeiros do Nordeste, feita pelo sistema bancário, que lá
os drenava, e pelos poupadores nordestinos que investiam no Centro-Sul.
Havia, enfim, o problema do intercâmbio externo, pois o Nordeste, ao exportar para o estrangeiro, recebia um
dólar subvalorizado, em razão do regime de câmbio diferencial, e em seguida
comprava no Sul a preços mais altos
que os do mercado internacional. Medi
essa transferência e demonstrei que o
Nordeste financiava, com seus parcos
recursos, o sul do país. Daí a necessidade, compensatória, de uma política de
investimento mais ambiciosa.
Esta foi a origem da primeira legislação de incentivos fiscais do país, elaborada por mim e enviada por JK ao Congresso. A ela se deve o surto de industrialização da região nordestina no período 1960-80. A Sudene precisava ganhar credibilidade e foi essa a sua maior
conquista. Pela primeira vez, pensou-se
o Nordeste como um todo, sem perder
de vista que somos parte do Brasil.
Quem criou e cimentou essa conquista
foi o presidente Kubitschek.
Muitas foram suas realizações. Há,
porém, um aspecto de sua presidência
que gostaria de abordar, por ser de
grande atualidade. Refiro-me às relações do governo brasileiro com o FMI.
Ao estudar o problema como funcionário das Nações Unidas, assumi posições abertas contra a ortodoxia do FMI,
que ignora as diferenças qualitativas entre as estruturas dos países desenvolvidos e as dos subdesenvolvidos. Desde os
anos 50, percebi que sua doutrina não
era inocente, pois privilegiar os credores era uma bem camuflada manobra
de dominação política. Meio século depois, um alto dirigente do Banco Mundial, Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de
economia, chegaria a conclusão idêntica, o que leva a crer que essa perniciosa
doutrina tende a ser abandonada.
O Brasil enfrentou, nos anos JK, problemas de desequilíbrio externo com
saldos negativos na conta corrente da
balança de pagamentos. O FMI, chamado em socorro já naquela época, preparou um relatório alarmista e receitou
uma série de cortes nos gastos públicos
que culminavam com a paralisação da
construção de Brasília. Juscelino perdeu
o controle ao tomar conhecimento das
condições impostas e reagiu com palavrões. Coube a mim assessorá-lo nesse
momento, pois quem o fazia, inclusive
nosso embaixador em Washington, não
parecia disposto a correr o risco de um
confronto com os norte-americanos.
Esse episódio me convenceu de vez de
que os técnicos do FMI estão longe de
fundamentar seu comportamento na
realidade de cada país. Negociam posições vantajosas para os credores e cedem quando lhes convém. Prova de que
cedem foi como reagiram à moratória
russa, nos anos 90. Prova do contrário
foi como se comportaram na Argentina.
Neste momento, em que se relembra
o presidente Kubitschek -que, para
não comprometer um projeto nacional,
fez frente às exigências descabidas do
sistema financeiro internacional-, é
natural que indaguemos até onde devemos ceder às pressões desse tipo exercidas atualmente sobre nosso país.
Celso Furtado, 82, economista, é membro da
Comissão Mundial (ONU/Unesco). Foi ministro
do Planejamento (governo João Goulart) e da
Cultura (governo Sarney). É autor, entre outras
obras, de "Formação Econômica do Brasil".
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