São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A Lei de Anistia impede a punição dos que praticaram tortura durante o regime militar?

NÃO

Crimes contra a humanidade

EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO e MARLON ALBERTO WEICHERT

NÃO, A Lei de Anistia de 1979 não impede a punição dos crimes da ditadura.
Mais de 30 mil cidadãos foram presos e torturados por órgãos da repressão no Brasil. Cinco centenas de pessoas foram mortas ou desapareceram. Foram crimes praticados por agentes do Estado, num contexto de ataque generalizado e sistemático a toda pessoa ou grupo suspeito de divergir do governo militar.
Esse cenário qualifica tais atos como crimes contra a humanidade, conceito vigente desde o Tribunal de Nüremberg (1945) e ratificado pela Assembléia Geral da ONU em 1946.
Crimes contra a humanidade não podem ficar impunes. A apuração e a responsabilização desses delitos, a qualquer tempo, são obrigações internacionais de todos os Estados.
Essa regra faz parte do direito internacional desde o final da Segunda Guerra Mundial e integra o ordenamento jurídico brasileiro. O país é membro da comunidade internacional de direitos humanos e, desde 1914, quando assinou as convenções de Haia, reconhece a força vinculante de preceitos dessa natureza.
Assim, quando agentes da repressão torturaram em larga escala, já vigoravam as normas penais que afirmavam ser esses crimes imprescritíveis e imperdoáveis.
A Lei de Anistia foi editada em 1979 pelo governo militar, antes do retorno à democracia. Se beneficiasse os agentes do próprio Estado, representaria uma auto-anistia. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a ONU têm vários precedentes de desconsideração de leis dessa natureza, pois é inadmissível e fere o senso de justiça aceitar que o perpetrador da violação aos direitos humanos possa assegurar sua própria impunidade.
A construção de uma interpretação de anistia também aos agentes da repressão começou nos anos 80, quando foram denunciadas publicamente as violências praticadas nos "anos de chumbo". Criou-se, então, um mito de absoluta impossibilidade de apurar os graves delitos cometidos.
Entretanto, a Lei de Anistia não abrangeu tais hipóteses. Ela anistiou os autores de crimes políticos e conexos, quando praticados com motivação política. Ora, só praticam crimes políticos ou com motivação política os que desejam ir contra o Estado. Os atos dos órgãos de repressão visavam o contrário: defender o governo.
Logo, não é preciso revogar ou alterar a Lei de Anistia, pois a punição desses crimes só depende de uma interpretação técnica do seu conteúdo.
O Chile teve sua lei de auto-anistia e relutou em punir os crimes do governo Pinochet. Acabou condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (2006). Caso nada seja feito pelo nosso sistema de Justiça, o Brasil colherá semelhante sanção internacional, o que é incompatível com a pretensão de ocupar vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU. Essa omissão legitimará, ainda, que outros países processem os autores dos crimes de lesa-humanidade cometidos aqui, como ocorreu com o Chile no caso Pinochet.
Apurar esses crimes não é revolver o passado, mas afirmar princípios de justiça necessários para a supressão de graves mazelas nacionais: a violência policial e a corrupção. Ambas permanecem e se alimentam da cultura que a tese da anistia disseminou: esquecimento e impunidade.
A tortura ainda faz parte das estratégias de investigação da Polícia, produzindo resultados ilusórios e consistindo em abominável prática. A corrupção impede o desenvolvimento social em prol de uma minoria. O Estado brasileiro, ao tolerar as violações cometidas no passado, dá aos torturadores e corruptos de hoje a perspectiva de que ficarão impunes e ocultos.
Em conclusão: não só é juridicamente adequado responsabilizar agentes do Estado que violaram direitos humanos como também o momento exige tal atitude. Reconciliar não é esquecer, mas conhecer, esclarecer e, então, reconstruir os laços.
Só assim será possível acreditar que a transição democrática cumpriu o papel de garantir a não-repetição dos atos violentos praticados pelo Estado contra seus cidadãos. As instituições públicas brasileiras têm maturidade democrática para finalmente cumprir essa tarefa.


EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO e MARLON ALBERTO WEICHERT, mestres em direito constitucional, são procuradores da República em São Paulo.


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