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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei de Anistia impede a punição dos que praticaram tortura durante o regime militar?
NÃO
Crimes contra a humanidade
EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO e MARLON ALBERTO WEICHERT
NÃO, A Lei de Anistia de 1979
não impede a punição dos crimes da ditadura.
Mais de 30 mil cidadãos foram presos e torturados por órgãos da repressão no Brasil. Cinco centenas de pessoas foram mortas ou desapareceram. Foram crimes praticados por
agentes do Estado, num contexto de
ataque generalizado e sistemático a
toda pessoa ou grupo suspeito de divergir do governo militar.
Esse cenário qualifica tais atos como crimes contra a humanidade, conceito vigente desde o Tribunal de Nüremberg (1945) e ratificado pela Assembléia Geral da ONU em 1946.
Crimes contra a humanidade não
podem ficar impunes. A apuração e a
responsabilização desses delitos, a
qualquer tempo, são obrigações internacionais de todos os Estados.
Essa regra faz parte do direito internacional desde o final da Segunda
Guerra Mundial e integra o ordenamento jurídico brasileiro. O país é
membro da comunidade internacional de direitos humanos e, desde 1914,
quando assinou as convenções de
Haia, reconhece a força vinculante de
preceitos dessa natureza.
Assim, quando agentes da repressão torturaram em larga escala, já vigoravam as normas penais que afirmavam ser esses crimes imprescritíveis e imperdoáveis.
A Lei de Anistia foi editada em 1979
pelo governo militar, antes do retorno à democracia. Se beneficiasse os
agentes do próprio Estado, representaria uma auto-anistia. A Corte Interamericana de Direitos Humanos e a
ONU têm vários precedentes de desconsideração de leis dessa natureza,
pois é inadmissível e fere o senso de
justiça aceitar que o perpetrador da
violação aos direitos humanos possa
assegurar sua própria impunidade.
A construção de uma interpretação
de anistia também aos agentes da repressão começou nos anos 80, quando foram denunciadas publicamente
as violências praticadas nos "anos de
chumbo". Criou-se, então, um mito
de absoluta impossibilidade de apurar os graves delitos cometidos.
Entretanto, a Lei de Anistia não
abrangeu tais hipóteses. Ela anistiou
os autores de crimes políticos e conexos, quando praticados com motivação política. Ora, só praticam crimes
políticos ou com motivação política
os que desejam ir contra o Estado. Os
atos dos órgãos de repressão visavam
o contrário: defender o governo.
Logo, não é preciso revogar ou alterar a Lei de Anistia, pois a punição
desses crimes só depende de uma interpretação técnica do seu conteúdo.
O Chile teve sua lei de auto-anistia
e relutou em punir os crimes do governo Pinochet. Acabou condenado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (2006). Caso nada seja
feito pelo nosso sistema de Justiça, o
Brasil colherá semelhante sanção internacional, o que é incompatível
com a pretensão de ocupar vaga permanente no Conselho de Segurança
da ONU. Essa omissão legitimará,
ainda, que outros países processem os
autores dos crimes de lesa-humanidade cometidos aqui, como ocorreu
com o Chile no caso Pinochet.
Apurar esses crimes não é revolver
o passado, mas afirmar princípios de
justiça necessários para a supressão
de graves mazelas nacionais: a violência policial e a corrupção. Ambas permanecem e se alimentam da cultura
que a tese da anistia disseminou: esquecimento e impunidade.
A tortura ainda faz parte das estratégias de investigação da Polícia, produzindo resultados ilusórios e consistindo em abominável prática. A corrupção impede o desenvolvimento
social em prol de uma minoria. O Estado brasileiro, ao tolerar as violações
cometidas no passado, dá aos torturadores e corruptos de hoje a perspectiva de que ficarão impunes e ocultos.
Em conclusão: não só é juridicamente adequado responsabilizar
agentes do Estado que violaram direitos humanos como também o momento exige tal atitude. Reconciliar
não é esquecer, mas conhecer, esclarecer e, então, reconstruir os laços.
Só assim será possível acreditar que
a transição democrática cumpriu o
papel de garantir a não-repetição dos
atos violentos praticados pelo Estado
contra seus cidadãos. As instituições
públicas brasileiras têm maturidade
democrática para finalmente cumprir essa tarefa.
EUGÊNIA AUGUSTA GONZAGA FÁVERO e MARLON
ALBERTO WEICHERT, mestres em direito constitucional, são procuradores da República em São Paulo.
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