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TENDÊNCIAS/DEBATES
A Lei de Anistia impede a punição dos que praticaram tortura durante o regime militar?
SIM
Anistia: geral e irrestrita
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR
A LEI nº 6.683/79 concedeu
anistia a todos os que, entre
2/9/61 e 15/8/79, cometeram
crimes políticos ou com eles conexos
(artigo 1º), sendo considerados conexos os de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política (parágrafo 1º). Discute-se se do parágrafo
1º deveriam estar excluídos os crimes
cometidos mediante a prática de tortura, ainda que seus autores tivessem
agido no cumprimento de uma ordem
funcional.
A dúvida tem por base o argumento
de que a tortura deve ser considerada
crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível e não anistiável.
Afinal, a própria Constituição Federal (artigo 5º, III) declara, como um
direito fundamental, que ninguém
será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.
O tema, porém, tem nuances que
não podem ser afastadas.
Em primeiro lugar, pondere-se que
a anistia é oblívio, esquecimento. Juridicamente ela provoca, na verdade,
a criação de uma ficção legal: não apaga propriamente a infração, mas o direito de punir, razão pela qual aparece depois de ter surgido o fato criminoso, não se confundindo com uma
novação legislativa, isto é, não transforma o crime em ato lícito.
Ou seja, anistiar os torturadores
que agiram dentro de um quadro político a ele obviamente conexo não significa violar a Constituição nem os
tratados internacionais que proscrevem a tortura como um crime contra
a humanidade.
Afinal, no direito moderno, a anistia não é medida voltada para uma determinada prática nem significa o seu
reconhecimento como legítimo, mas
é ato soberano que não pede nenhuma justificação condicional à autoridade que a concede, porque não visa a
outro interesse senão o interesse soberano da própria sociedade.
Nesse sentido, não está submetida
a ponderações entre a dignidade
ofendida do torturado e o ato degradante do torturador.
Em segundo lugar, excluir o torturador da anistia referente àqueles que
cometeram crimes conexos sob o argumento de que se trata de crime
contra a humanidade e, portanto, imprescritível provoca um efeito que há
de desnaturar o caráter geral e irrestrito da lei, conforme lhe reconheceu
o STM (Superior Tribunal Militar).
Como o parágrafo 2º do artigo 1º da
lei 6.683/79 exclui expressamente
dos benefícios da anistia os que haviam praticado crimes de terrorismo,
por exemplo, mediante seqüestro, a
jurisprudência do STM, diante de um
flagrante tratamento desproporcional, estendeu o benefício: a anistia
tornou-se geral e irrestrita.
Ora, uma reinterpretação da lei, sobretudo com o fito de punir militares
por atos de tortura, reverterá o argumento jurisprudencial, pois irá solapar a extensão da anistia aos terroristas, fazendo com que todo o universo
de avaliações mutuamente negativas
(exclusão/inclusão de terrorista/torturador) tenha de ser rediscutido.
Ou seja, em nome da mesma proporcionalidade, haverá de lembrar-se
que tratados internacionais consideram, por exemplo, também o seqüestro motivado por razões políticas um
crime contra a humanidade, igualmente imprescritível. Com isso, voltaria a necessidade de avaliações de
práticas criminosas e suas conseqüências de ambos os lados, prejudicando o correto entendimento de
uma anistia geral e irrestrita.
Ou seja, de parte a parte, numa
reinterpretação da lei, o caráter criminoso dos respectivos atos (tortura/
seqüestro) terá de ser retomado, pois
é com base nos mesmos argumentos
que o direito de punir (anistia) seria
ou não afastado.
Isto é, numa reinterpretação da lei
que exclua da anistia a prática da tortura, o argumento de justiça, invocado pelo STM em favor dos que, movidos por razões políticas, tenham praticado atos de terror (seqüestro), acabaria por ser, inevitavelmente, utilizado em favor dos torturadores.
Se da Lei da Anistia devessem estar
excluídos os torturadores, por proporcionalidade, excluídos também
estariam os seqüestradores. Interpretação que, em suma, violaria o
sentido já reconhecido da lei de conceder uma anistia geral e irrestrita.
TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR, 67, advogado, é professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da USP.
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