|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
A caixa-preta da Justiça
JOSÉ CARLOS DIAS
É preciso mesmo conhecer a caixa-preta do Poder Judiciário. Não há
por que se sentir melindrada a tripulação do avião, por pretender-se apurar se
o acidente ocorreu pelas falhas humanas, técnicas, ou por ambas, confiando
que a caixa-preta ajude na elucidação.
O povo brasileiro elegeu Lula para governar de acordo com seus talentos, seu
jeito de ser, seu carisma. E foi esse homem que teve a ousadia necessária para
dizer que é preciso também mexer no
Judiciário, abrir sua caixa-preta, e que
defendeu, abertamente, o seu controle
externo.
Se qualquer um de nós brasileiros tem
o direito de assim pensar e dizer, muito
mais razão e legitimidade tem aquele
que foi eleito para presidir este país, investido de mandato para afirmar que os
poderes são independentes, mas não
são estanques, e que a simbiose de Montesquieu se aperfeiçoa com a harmonia
que de forma nenhuma pode ser equiparada a cambalacho, a demarcar limites e posições em seus terreiros.
O Poder Executivo é extremamente
criticado e questionado. Como vem das
ruas a sua legitimidade, de todo canto
surgem pedras e ataques, fundados e infundados, até mesmo por parte de
membros do Poder Judiciário, muitas
vezes em atividade não-judicante. O
presidente do Supremo, de talento e brilho, vive a lançar farpas contra o Executivo. Há quem diga que juiz não deve falar fora dos autos, mas a verdade é que
Marco Aurélio é também chefe de Poder e não pode ficar silente em certas
circunstâncias.
O Legislativo também volta e meia é
alvo de críticas, as mais violentas, e sobrevive. Tantos ataques são importantes para que se aperfeiçoe a representação parlamentar. A discussão sobre a
abrangência da imunidade parlamentar
é um exemplo nesse sentido. Os poderes com origem no voto popular têm indiscutível legitimidade para dizer que é
hora de a Justiça ser eficiente, rápida, e
equitativa, que há um importante papel
reservado ao Judiciário na construção
do país como democracia autêntica.
Não se pode pensar em soluções de
conflitos sociais sem a participação do
juiz; o combate à violência e à criminalidade pressupõe aplicação de pena com
equilíbrio; a impunidade e a Justiça lerda são fenômenos de forte carga criminógena.
O aprimoramento do direito positivo
depende da construção de uma jurisprudência sempre renovada e adaptada
aos valores estatuídos como direitos
fundamentais em nossa Constituição. E
isso tudo implica reforma do Judiciário,
o aprimoramento de suas funções, a depuração de sua forma de atuar; não é
uma questão interna que toca exclusivamente aos togados resolver entre eles.
Nós, jurisdicionados, destinatários do
seu desempenho, temos o direito e o dever de intervir, na condição de consumidores de tais serviços essenciais e atores do ritual da Justiça, como partes, autores, réus ou vítimas, ou como simples
expectadores.
Dizer que a corrupção aumenta de forma assustadora também entre os órgãos da Justiça não constitui ofensa aos juízes
|
A visão republicana de Estado não
dispensa o aprofundamento do papel
do juiz perante o povo, e assusta saber
que a metástase do crime organizado se
infiltra por todas as células do corpo
brasileiro, inclusive atingindo o Poder
Judiciário. Dizer que a corrupção aumenta de forma assustadora também
entre os órgãos da Justiça não constitui
ofensa aos juízes. Bem ao contrário, isso
demonstra atitude de zelo. Afinal, como
advogado que sou, e filho de juiz, sinto-me bem quando posso enaltecer a Justiça. Não é fácil, mas sinto ser necessário
dizer que muita coisa vem piorando de
forma assustadora: o direito vem sendo
cada vez mais mal distribuído, por muitas razões externas ao Judiciário, mas
também pela incompetência, inércia
burocrática, falta de iniciativa, capacidade inovadora ou de zelo de quem o
aplica, ou em razão da corrupção que,
cada vez mais, conspurca a toga.
O debate se abre e é bom que se abra.
O presidente não ofendeu ninguém,
muito menos um poder. Os juízes que
se viram ofendidos e dirigiram ao STF
interpelação não podem afirmar terem
sido tocados em sua honra, bem jurídico personalíssimo. Tal bem não é atingido quando alguém, como presidente da
República, diz com clareza e sem subterfúgios que quer transparência também no Judiciário, defendendo o controle externo, de forma a fazer crescer o
debate sobre o tema. O temperamento
direto, firme, do presidente não ficou
escondido ou esquecido num escaninho de sua longa carreira política. Aí,
pelo menos, está o Lula de sempre, dizendo o que pensa de forma aberta e em
sintonia com os valores republicanos.
Esperemos que todas as caixas-pretas
sejam abertas, inclusive a da Justiça.
José Carlos Dias, 64, é advogado criminalista.
Foi ministro da Justiça (governo Fernando Henrique) e secretário da Justiça do Estado de São
Paulo (governo Montoro).
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Tarso Genro: Esquerda em processo Próximo Texto: Painel do leitor Índice
|