|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TENDÊNCIAS/DEBATES
A falência da ocupação do Iraque
DEMÉTRIO MAGNOLI
No fim do mês, o poder nominal no
Iraque será transferido das forças
de ocupação para um governo provisório iraquiano. Como as tropas da coalizão permanecerão no Iraque, sob o comando de Washington, a transferência
parece pouco relevante. Não é: ela assinala a derrota política da ocupação e
acelera a retirada definitiva das tropas
da coalizão.
A administração Bush definiu como
objetivos da invasão do Iraque a instalação no país de um governo estável e alinhado com os EUA e a reorganização de
conjunto da geopolítica do Oriente Médio. Sob a fórmula da "difusão da democracia" ocultava-se uma estratégia
de estabilização da Arábia Saudita, neutralização do Irã e da Síria e pacificação
da Palestina nos termos desejados pelo
gabinete israelense de Ariel Sharon. O
fracasso no Iraque significa o abandono
do conjunto desses objetivos estratégicos e abre uma nova etapa de turbulência no Oriente Médio.
A derrota da ocupação esboçou-se na
impotência da coalizão diante da resistência armada no Iraque, conduzida essencialmente pelo aparato do partido
Baath. Depois, as revoltas simultâneas
dos sunitas de Fallujah e do clérigo xiita
Moqtada al Sadr obrigaram as forças da
coalizão a, pela primeira vez, negociar
com a insurgência. Fallujah tornou-se,
para todos os efeitos, uma "cidade libertada", e as tropas americanas também
tiveram que abandonar as áreas centrais de Kerbala e Najaf. O recurso desesperado a antigos generais de Saddam
Hussein, designados para manter a ordem no "triângulo sunita", foi corretamente interpretado no Iraque como o
início da retirada americana.
Mas o golpe final aconteceu nos EUA,
não no Iraque. A divulgação das imagens do centro de tortura sistemática
instalado no presídio de Abu Ghraib
desmoralizou a ocupação perante a opinião pública americana. Nos processos
contra os guardas do presídio, emergem indícios que conectam Abu Ghraib
ao Afeganistão e à prisão "off shore" de
Guantánamo. Os fios da rede global de
tortura parecem conduzir ao Pentágono e à própria Casa Branca, onde foi
criada a figura jurídica esdrúxula do
"combatente ilegal" para circundar os
tratados internacionais sobre a guerra e
os direitos humanos.
Depois de Abu Ghraib, a administração Bush optou pela retirada planejada,
renunciando aos objetivos originais da
invasão. A negociação da resolução da
ONU sobre a transferência do poder e a
formação do governo provisório iraquiano revelaram as dimensões da derrota. No Conselho de Segurança, Washington recuou três vezes, até se resignar a uma resolução que, implicitamente, confere ao governo provisório a
prerrogativa de decidir pela retirada antecipada das forças de ocupação. No
Iraque, o Conselho de Governo, um
corpo fantoche iraquiano inventado pela coalizão, adquiriu súbita vitalidade e,
atropelando o enviado da ONU e o
mandatário americano, designou o núcleo do novo governo provisório.
A derrota da ocupação esboçou-se na impotência da coalizão diante da resistência armada
no Iraque
|
Paul Bremer, dos EUA, e Lakhdar
Brahimi, da ONU, articulavam um governo de tecnocratas, capaz de aparentar alguma independência diante da
coalizão. Mas o Conselho de Governo,
determinado a controlar o aparelho de
Estado em construção, indicou nomes
da sua própria camarilha para os postos-chave. O produto da operação é um
gabinete constituído no essencial por figuras que são vistas no Iraque como títeres de Washington. O primeiro-ministro, Iyad Allawi, trabalhou como
agente da CIA. O presidente é protegido
da monarquia saudita. Os ministros das
Finanças e do Petróleo são exilados com
carreiras ligadas aos conglomerados
empresariais anglo-americanos.
O golpe branco do Conselho de Governo pode custar caro à coalizão, pois o
novo governo provisório terá de comprar a legitimidade ecoando a voz das
ruas. Ghazi Yawar, o presidente, já começou a criticar as forças ocupantes, e
Allawi entrou em choque com Bush exigindo a entrega de Saddam Hussein e os
outros prisioneiros do antigo regime à
custódia iraquiana. Chegará o dia em
que os fantoches, em meio ao fogo cruzado entre as forças da coalizão e as da
insurgência, terão de solicitar a retirada
das tropas ocupantes. Então, a retirada
ordeira poderá se transfigurar em debandada humilhante.
Há 15 anos, o fundamentalismo islâmico celebrou a vitória da "primeira jihad" contemporânea, que foi a retirada
soviética do Afeganistão. Aquele evento
seminal está na origem da Al Qaeda e da
difusão do terror islâmico. O desmoronamento do castelo iraquiano é acompanhado em todo o mundo muçulmano e, em larga medida, narrado como a
"segunda jihad". As forças da coalizão
deixam, atrás de si, um Oriente Médio
atravessado por uma guerra civil internacional, entre os regimes alinhados
com o Ocidente e a insurreição fundamentalista. A "terceira jihad" está em
marcha na Arábia Saudita. Os seus sinais, largamente ocultados pelo noticiário truncado da mídia ocidental, transparecem com nitidez nas cotações internacionais do barril de petróleo.
A "guerra ao terror" de Bush é o cenário geopolítico e ideológico ideal para a
difusão da mensagem escatológica de
Osama bin Laden. Não é casual que os
sites do fundamentalismo islâmico expressem, abertamente, a preferência de
Alá por uma vitória de Bush nas eleições
presidenciais americanas.
Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia
humana pela USP, é editor do periódico "Mundo
- Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP.
Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Zander Navarro: Por uma nova regulação social
Índice
|