São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 2008

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Entre o permanente e o momentâneo

JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA


Apesar das dificuldades na Rodada Doha, nossa política externa vem se afirmando como proporcional a um país sério e responsável

A POLÍTICA externa do Brasil não difere das demais políticas exteriores de Estados médios, satisfeitos, continentais e democráticos. A inserção internacional de tais Estados tende a ser praticada como matéria de Estado, com cálculos e interesses de longo prazo. A política externa de Lula não é original em ganhos e perdas imediatos. Mas é preciso medi-los na balança do tempo.
O Brasil é um país que equilibra interesses de longo prazo com a necessidade de adaptações necessárias às transformações que ocorrem no meio internacional. O país construiu, do século 19 ao 21, conceitos próprios.
Em primeiro lugar, inventou uma idéia cooperativa e positiva das suas relações com o mundo, peculiar e própria a um país que foi colônia, mas também centro de um império.
O Brasil vem deixando de lado o atávico complexo de colonizado. Está atuando na construção de regras internacionais. Ancorado na experiência bem-sucedida da formação do Estado nacional, ao contrário de vários de seus vizinhos na América Latina, o Brasil não é dado a bravatas e discursos apaixonados em política externa. Pratica a temperança grega.
Em segundo lugar, nutre recalcitrâncias com relação a alinhamentos automáticos às potências de plantão.
Tampouco se arvora em advogado de países que não realizam suas lições domésticas de normalização econômica e política. Terceiro: especializou-se em buscar diálogo e intermediação entre o Norte e o Sul, ao lado da tradição pragmática de interesses a preservar.
Reverteu o binômio guerra-paz em favor da dialética do desenvolvimento. Há muito entendeu o Brasil o seu lugar, próprio, entre o Norte e o Sul, quase solitário, ambientado em suas peculiaridades.
O problema que se põe hoje é se o governo atual mantém esse padrão do agir no mundo em que vivemos. Há uma onda em curso, diante das dificuldades da Rodada Doha, de rever a avaliação até então geralmente positiva da política exterior do Brasil.
Nesse aspecto, a política externa de Lula, embora tenha agregado nuanças próprias, não rompeu a tradição brasileira. Ao contrário, aprofundou o lastro e conferiu a algumas matérias, em especial no que tange ao diálogo entre o Norte e o Sul, perspicácia política e eficiência instrumental.
Os debates em torno de orientações e reorientações são positivos. Permitem adensar o tema no seio da sociedade civil. A política externa, embora política pública e, como tal, sujeita ao escrutínio dos cidadãos que escolhem seus governantes, permanece, em alguma medida, alheia ao povo. Mas vem crescendo seu peso relativo no debate nacional.
As dificuldades notadas, em especial, na dimensão multilateral da ação do país, tanto no tema da reforma das Nações Unidas quanto nas instituições econômicas multilaterais, devem ser debatidas com setores mais amplos da sociedade, inclusive com aqueles que militam na pesquisa acadêmica nessa área em nosso país. Não pode ser um assunto apenas do Itamaraty e dos empresários.
Há que reconhecer que o caso da Rodada Doha vem incomodando setores da opinião pública nacional. Dividimo-nos entre o complexo tupiniquim e a grandiloqüência. Contudo, nem o Brasil podia mudar os termos das negociações dos temas agrícolas no contexto da rodada nem o Brasil é o culpado pelo fracasso do esforço de construção de plataformas mais previsíveis na ordem econômica e política internacional do início deste século 21. As razões são bastante mais complexas que a dramaticidade passional das discussões realizadas nesses dias no país.
Outra área que merece debate mais amplo é a política sul-americana do Brasil. Essa é uma área de delicada operação, ainda que conceitualmente seja muito importante para o país.
A vertente regional foi entendida como vital para a realização dos interesses e valores brasileiros. Mesmo diante da alteração de humor de alguns países e de gestos cheios de dramaticidade de alguns líderes regionais, o Brasil manteve a serenidade e realimentou o velho paradigma da "cordialidade oficial" com os vizinhos, advindo do século 19, criado pelo visconde de Rio Branco, nas grandes questões do rio da Prata.
Ele foi ressuscitado pela diplomacia atual e preenchido por vetores materiais novos, como a internacionalização das empresas brasileiras no entorno sul-americano.
A seguir esse ritmo, a política externa do Brasil assegura caminho por sobre a marcha da herança deixada pelo patrimônio de inúmeros brasileiros que, em 200 anos do Brasil independente, fazem do Brasil um país respeitado, mesmo quando não ganha uma partida no xadrez internacional.
O Brasil de Lula age no mundo sem susto e com a tranqüilidade de que essa é uma área de Estado. A política externa vem se afirmando como proporcional a um país sério e responsável, já expressivo na economia mundial, ainda que tão desigual e complexo. Os debates precisam, porém, ser ampliados a todos interessados.


JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA , 47, doutor em história pela Universidade de Birmingham (Inglaterra), é professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília) e diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais. É autor, entre outras obras, de "Relações Internacionais - Dois Séculos de História".

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