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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Uma conversa entre a corda e o pescoço

JOSÉ GRAZIANO DA SILVA


Os brasileiros pobres passaram a ter espaço e voz como interlocutores prioritários do Estado brasileiro

A América Latina foi submetida a um verdadeiro torniquete econômico nas últimas duas décadas. Políticas de ajuste insustentáveis produziram uma asfixia dos laços sociais no continente, empurrando a economia e as populações para um dos piores momentos da sua história. Empregos, direitos e cidadania foram esfarelados num círculo vicioso de pobreza e estagnação. Seus efeitos deletérios ainda sacodem famílias, vários governos e nações inteiras.
É dessa perspectiva que deve ser analisado o Relatório da Insegurança Alimentar no Mundo, de 2003, divulgado recentemente pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação). Ele aponta uma redução da fome no Brasil exatamente nesse período (anos 90), mas não há conflito entre uma coisa e outra. Ao contrário, trata-se de um diálogo entre a corda e o pescoço. O documento da FAO mostra um recuo de apenas 3 milhões de pessoas no contingente de subnutridos nos últimos dez anos. Nesse ritmo, seriam necessários nada menos que 47 anos para zerar a fome no país e mais de 25 para reduzi-la à metade, ultrapassando assim o ano de 2015, fixado para se cumprirem as Metas do Milênio, da ONU.
O saldo da "década do desespero" deve ser mais bem compreendido para que o país não repita equívocos que o levariam a desperdiçar mais dez anos na luta contra a insegurança alimentar.
Em primeiro lugar, o relatório da FAO mostra que o Brasil, em termos de subnutrição, ainda se encontra no grupo 3, atrás de países como Namíbia, Costa Rica, Indonésia e Nigéria. O recuo da fome perdeu fôlego no governo FHC. Entre 1990-92 e 1995-97 o número de subnutridos caía em media 380 mil por ano, enquanto no período seguinte, 1995-97/1999-2001, esse valor foi reduzido para 275 mil. No ritmo da gestão anterior demoraria mais: levaríamos 56 anos para erradicar a fome e pelo menos 30 para reduzi-la à metade. É justamente essa regressão que o governo Lula quis evitar ao definir a fome como a sua grande batalha social.
O relatório é um indicador valioso para acompanhar a progressão das Metas do Milênio, assim como sinaliza a insuficiência do que vinha sendo feito no Brasil para atingi-las. Levantamentos feitos pela Unicamp listam pelo menos dez metodologias diferentes, todas respeitáveis, que estimam a fome e a desnutrição com resultados diversos e evolução distinta entre si. A da FAO inclui-se entre os métodos indiretos. Ela estima o contingente de subnutridos a partir de dados secundários, como o volume de alimentos no país, inferindo assim a disponibilidade total per capita (produção local, menos saldo comercial agrícola, mais estoques de alimentos).
Indicadores de consumo alimentar e a própria distribuição de renda são cotejados em seguida para modular a desigualdade de acesso a essas calorias. Dessa equação emerge a população que vive abaixo das necessidades mínimas -o contingente subnutrido. A FAO fala de subnutridos, que são aqueles casos de insegurança alimentar aguda, em geral associados à situação de indigência ou da população em extrema pobreza. Os números dos indigentes representam em geral a metade dos pobres estimados a partir de dados da renda.
Como todo método indireto, há limitações. Perdas agrícolas, por exemplo (processamento agroindustrial e transporte), podem ser subestimadas, o que rebaixaria o universo subnutrido. Num quadro como o vivido pela economia brasileira e latino-americana, o calibre da corda pode até engrossar sem trazer alívio ao pescoço. Ou seja, a proporção de subnutridos pode ser mascarada pelo aumento da oferta calórica, sem que necessariamente tenham acesso a ela, ou pelo menos de forma regular e digna.
A metodologia do Fome Zero adota uma linha de pobreza regionalizada a partir da estimativa da renda familiar disponível (renda corrente, menos descontos de aluguel, mais autoconsumo estimado para as famílias agrícolas). O resultado mostra as famílias pobres, em situação de insegurança alimentar, que não têm pessoas passando fome permanentemente, pois podem viver de bicos, doações, mas não sabem o que comerão no dia seguinte.
A FAO, mais do que ninguém, conhece essas nuances, razão pela qual deu um espaço sem precedentes ao Programa Fome Zero no seu relatório de 2003. É o reconhecimento de algo inédito em marcha no país: nunca uma liderança popular numa economia com a importância da brasileira deu tamanha prioridade ao combate à fome como o fez o presidente Lula.
Em dez meses, dobramos a alimentação escolar das crianças de 3 a 6 anos, implantamos merenda escolar nas creches públicas e filantrópicas, triplicamos o valor da merenda escolar das escolas indígenas, instituímos programas permanentes, como o Garantia-Safra e o Cartão-Alimentação/Bolsa-Família (que chega a mais de 1,5 milhão de famílias no semi-árido). Nesse período, conseguimos reduzir a necessidade por programas emergenciais como o Bolsa-Renda (que o governo anterior diminuíra de R$ 60 para R$ 30 por família), melhoramos a eficácia e a transparência do cadastro único do governo, depurando 30% de benefícios indevidos para atender a um número maior de famílias necessitadas.
Enfim, os brasileiros pobres passaram a ter espaço e voz como interlocutores prioritários do Estado brasileiro. Não estão menos pobres, ainda, mas estão mais visíveis do que nunca e mais fortes para se livrarem da corda secular que sufoca seus direitos.


José Graziano da Silva, 53, professor titular de economia agrícola da Unicamp, é ministro da Segurança Alimentar e do Combate à Fome.


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